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''Não vim aqui propor a divisão do Brasil''

Enviado da ONU diz ainda que ?autonomia não é carta branca para índio violar direitos humanos?

Por Vannildo Mendes
Atualização:

Desde que chegou, no dia 14, o americano James Anaya está causando alvoroço no País - pois sua visita ocorre às vésperas da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o futuro da reserva Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima. Anaya não é um americano comum. De etnia apache - imortalizada nos filmes de faroeste por escalpelar colonizadores abatidos em combate -, ele escolheu o Brasil como sua primeira missão no cargo de relator especial da ONU para Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais dos Povos Indígenas, para o qual foi eleito em maio. Nacionalistas e setores militares estão de orelha em pé. Temem que sua presença acabe influenciando a decisão do STF e abra espaço, no futuro, para ataques à soberania nacional, com mutilação de territórios em favor de povos indígenas alçados à condição de nações independentes. "Não há o que temer, não vim aqui propor a divisão do Brasil", afirma Anaya, nesta entrevista ao Estado. Como o senhor vê o temor de setores militares e nacionalistas de que sua visita traga riscos à soberania? Não há nada a temer. Não vim aqui propor a divisão do Brasil em 200 nações independentes, uma para cada etnia indígena. Falo por mim, mas não creio que a ONU ou quem quer que tenha bom senso proponha tal coisa. O Brasil se destaca no cenário externo exatamente por ter tido méritos em promover a cooperação com outras nações, apoiando as iniciativas da ONU, no enfrentamento dos problemas indígenas, no atendimento de suas demandas e no alcance de melhores condições de vida para todos. Se todos assumirmos uma atitude de boa-fé, espero que eles (os críticos da sua missão) vejam boa-fé nas minhas intenções. Como outras nações enfrentaram essa suposta ameaça à soberania? Nos EUA e em outros países, houve o mesmo temor de separatismo e divisão territorial, hoje superado. Houve conflitos e enfrentamentos, mas não há um só caso conhecido no mundo de destruição de um Estado por demandas indígenas. Houve, ao contrário, fortalecimento e consolidação de Estados que encontraram soluções para a questão indígena, baseadas na justiça e no respeito à diversidade. Não há o menor fundamento lógico no temor de desintegração ou mutilação do Estado brasileiro. Onde está, então, o motivo da celeuma? Há muito motivo, sim, para reflexão frente à realidade dramática da maioria das comunidades indígenas, a tantas injustiças e tanta pobreza. Nenhum país cumpriu por completo o desafio de superação desses problemas. Por isso a ONU criou essa relatoria desde 2001. A autodeterminação do povo indígena não atenta contra o Estado. Mas falamos aqui da integridade do Estado que inclua na sua política nacional o respeito às culturas em todos os seus aspectos de diversidade e seus direitos basilares. O excesso de autonomia indígena não pode criar castas fora da lei? Autonomia não é carta branca para índio violar direitos humanos, cometer crime e ficar impune. Respeitar costumes, tradições e autodeterminação dos povos não significa compactuar com tortura, escravidão ou maus tratos. É preciso um pacto universal de direitos humanos que valha para todos, inclusive indígenas. O que mais o incomoda na luta pelos direitos indígenas? A falta de voz dos índios. Há pessoas bem-intencionadas debruçadas sobre a questão, mas não se encontrou até agora a fórmula adequada de exercício da cidadania e de poder político pelas comunidades indígenas. Por que o Brasil foi escolhido como primeira missão internacional no cargo? Acho que o Brasil tem um papel central na luta global pela fundação de uma sociedade mais tolerante e respeitosa com a causa indígena, com a diversidade cultural e étnica. Dos anos 70 para cá, as lutas resultaram em leis avançadas, como a da demarcação das terras indígenas. É um modelo que a ONU pode difundir em outros cantos do mundo. A Constituição de 1988 foi um marco para os povos indígenas do mundo. O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer os direitos indígenas no plano legal. Que diferenças há entre a política indígena do Brasil e a dos EUA? Historicamente, os Estados Unidos formaram uma sociedade excludente, a partir da idéia de um modelo de Estado homogêneo, com discriminação de minorias, como negros, hispânicos e índios. Esse modelo significava não-assimilação e mais discriminação. Os dois países têm histórias paralelas, mas felizmente o Brasil buscou outro caminho e é hoje um país mais avançado em termos de Constituição e de leis de proteção aos indígenas. Pelo visto, seu relatório será otimista? Será realista, mas eu sou um otimista e vejo a vida por conceitos dialéticos segundo os quais a humanidade evolui e supera seus problemas a cada etapa. Foi o que aconteceu com a causa das mulheres na virada do século 19 para o 20. Acho que no Brasil se constrói um modelo de Estado multicultural. Essa é uma tendência de sociedade moderna do futuro que desejo, dentro do processo de evolução cultural da humanidade. E o julgamento do STF sobre a Raposa Serra do Sol? Não vou me manifestar sobre esse tema porque seria desrespeitoso com o STF e eu estaria fugindo ao objetivo do meu mandato. A Raposa é uma questão que faz parte de um processo judicial interno em andamento e eu não posso opinar no momento. Confio em que o STF tomará uma decisão com base na Constituição do Brasil, que tem algumas das leis indígenas mais avançadas do mundo, sem nenhuma influência de forças externas no processo judicial, partam de onde partirem. Mas sua vinda nessa data foi só coincidência? Não vim aqui influenciar a decisão do STF. De fato fui acionado para vir nessa data por um grupo de representantes de povos indígenas do Brasil. Encaminhei o assunto pelos canais diplomáticos, mas não impus nenhuma condição. O governo brasileiro concordou, enfim, com a agenda e me fez o convite para vir nesta data.

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