Militares querem deixar operação que acolhe venezuelanos

Para Defesa, Forças Armadas devem diminuir responsabilidades na ‘Acolhida’, considerada modelo para atender fluxo de imigrantes

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Por Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA - O Ministério da Defesa discute no governo Jair Bolsonaro como retirar as Forças Armadas da Operação Acolhida, criada para receber e atender venezuelanos. Considerada modelo pelas Nações Unidas e um dos raros trunfos internacionais do governo, a operação está prestes a completar três anos e sofreu mudanças de dinâmica por causa da redução do fluxo de imigrantes provocado pela pandemia da covid-19. Há quem defenda que ela seja apresentada para concorrer ao prêmio Nobel da Paz.

Oficiais generais do Ministério da Defesa e das Forças Armadas já manifestaram internamente o desejo de sair da operação ou ao menos reduzir ao máximo o engajamento das tropas. É corrente entre eles a avaliação de que chegou a hora de “passar o bastão” e diminuir as responsabilidades, assumidas em março de 2018. A operação é coordenada pela Casa Civil, comandada pelo general Walter Braga Netto.

Antes da pandemia do novo coronavírus, chegavam a Roraima cerca de 500 venezuelanos por dia; depois, o fluxo foi praticamente interrompido com o fechamento da fronteira. Foto: Werther Santana/Estadão - 19/04/2018

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Entre os militares, a Operação Acolhida é classificada como Força Tarefa Logística Humanitária. O comando é do Exército, que cede espaços no 3º Pelotão Especial de Fronteira em Roraima para receber os imigrantes. Eles também trabalham em Boa Vista, capital do Estado, e Manaus (AM), cidades que concentram os venezuelanos e têm abrigos.

A cada três meses, militares da Marinha, da Aeronáutica e principalmente do Exército são deslocados de vários comandos do País para assumir como o contingente da vez. Em janeiro, está prevista a décima troca de pessoal. Ao todo, 650 militares serão enviados a Boa Vista e Pacaraima e Manaus.

Além da logística, os militares cuidam da segurança e atendimento de saúde. Outros órgãos do governo prestam atendimento psicossocial, do qual também fazem parte cerca de uma centena de entidades da sociedade civil e da ONU. Os migrantes e refugiados são vacinados, passam por avaliação clínica, entrevistas e podem solicitar emissão de documentos como CPF. Eles recebem refeições, são alojados num dos 12 abrigos temporários, e recebem kits de higiene e limpeza, podendo participar de atividades de lazer e aulas de português.

Um almirante da Marinha e um general do Exército, ambos da ativa e, por isso, ouvidos reservadamente, confirmaram a intenção de deixar a Acolhida. Um comandante da Força Terrestre comparou as Forças Armadas a uma espécie de “Posto Ipiranga” no governo Bolsonaro.

Nos bastidores, militares afirmam que a operação deve se concentrar mais na interiorização dos imigrantes para desafogar a região Norte, menos estruturada – e que o Ministério da Cidadania, que cuida dessa estratégia e tenta encontrar empregos e elos familiares bem como abrigo no destino aos venezuelanos por todo o País, deveria assumir mais protagonismo.

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Brasil é o quinto destino do êxodo da América do Sul. Na foto, soldados do Exército controlam entrada e saída de imigrantes em abrigo de Roraima, em 2018. Foto: Werther Santana/Estadão - 17/04/2018

Cerca de 44 mil já foram transportados a outras cidades do País, tendo como destinos principais São Paulo, Amazonas, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná. O ritmo, no entanto, está aquém do desejado. Neste ano, 16,7 mil foram deslocados até novembro, menos do que os 22,2 mil em todo o ano passado. Cerca de 3,5 mil permaneciam nos abrigos, segundo dados do governo.

Nos últimos meses, aumentaram as queixas de oficiais com o envolvimento das Forças Armadas. Ao mesmo tempo, os militares passaram a ser enviados para mais operações de Garantia da Lei e da Ordem, como a Verde Brasil, e o suporte da Operação Covid, durante a pandemia do novo coronavírus.

Os generais dizem que esse “desvio” de função, como classificam, ocorre por pressão política e social, além da falta de pessoal e organização em outros órgãos de governo.

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Apesar da vontade de sair da Acolhida, os militares preveem dificuldades em encontrar outro órgão capaz de assumir as principais tarefas operacionais – o atendimento na ponta aos refugiados e imigrantes que escapam da crise generalizada na Venezuela.

Há um outro fator. A cúpula do Ministério da Defesa teme, ao abandonar ações subsidiárias e de assistência, um dano de imagem, pois passaria uma mensagem negativa e perderia prestígio. Esse é um receio que as Forças Armadas têm, na avaliação de um general da ativa que acompanha os debates internos. De acordo com esse general, ainda que a operação seja considerada importante para segurança humana, ela consome efetivo e orçamento.

Imigrantes no ginásio Tancredo Neves, transformado em abrigo pela Defesa Civil em Roraima, Boa Vista, no começo da crise. Foto: Werther Santana/Estadão - 17/04/2018

Pandemia

Antes da pandemia, chegavam cerca de 500 venezuelanos por dia a Roraima. Depois, o fluxo foi praticamente interrompido com o fechamento da fronteira – sempre há possibilidade de ingresso clandestino por meio de trilhas abertas na mata, as “trochas”, como dizem os venezuelanos.

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O orçamento previsto para o ano que vem é de R$ 90 milhões, ligeiramente abaixo do proposto em 2020 – R$ 91,2 milhões. Os recursos foram ampliados em 2020, e a dotação atual é de R$ 283 milhões, conforme dados do Painel do Orçamento Federal. Desses, R$ 254 milhões foram empenhados e R$ 114 milhões efetivamente pagos.

O rumor da vontade de sair dos militares chegou ao conhecimento do Ministério Público Federal. Em setembro, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) questionou os militares sobre a redução orçamentária e a possibilidade de acabar com a Operação Acolhida. O Ministério Público Federal apurou que o plano era usar apenas 25% do orçamento atual em 2021 e encerrar a operação ao fim do ano, transferindo a assistência aos governos locais, organizações não governamentais e agências internacionais.

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O general Antonio Manoel de Barros, comandante da operação, disse em reunião com a PFDC, Defensoria Pública da União e Conselho Nacional dos Direitos Humanos, em outubro, que a Acolhida não vai acabar. “Mesmo com a redução de recursos, não vai acabar. Já estamos buscando novas estratégias e colaboradores. A ideia do Exército é readequar a coordenação com a parceria de Ministérios”, afirmou o general Barros.

Questionada sobre mudanças na Acolhida, a Casa Civil disse que “os trabalhos de assistência emergencial aos refugiados e aos migrantes venezuelanos continuam atuando no mesmo modelo”. “Quando for necessário e oportuno algum tipo de reestruturação, o ajuste será feito de maneira gradual, responsável e de forma que mantenha o trabalho qualificado e eficaz desenvolvido”, disse o órgão que coordena os trabalhos no âmbito do governo federal. 

A secretaria executiva do Comitê Federal de Assistência Emergencial informou que durante a pandemia as ações principais têm sido prestar saúde e proteção social aos venezuelanos. O comitê disse que deve permanecer o foco em interiorizar os imigrantes abrigados em Roraima. Atualmente, a média é de 1,3 mil venezuelanos transportados para outras cidades por mês. Há duas semanas, o comitê assinou um protocolo de intenções para ampliar a interiorização com a Confederação Nacional dos Municípios, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR Brasil), a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

O governo Bolsonaro afirma que campanhas para indicação da Acolhida ao Nobel de Paz “demonstram o reconhecimento, a relevância e a efetividade da gestão de governança feita pelos órgãos públicos e demais parceiros”. O órgão ressaltou que, por regra da premiação, a indicação deve partir de terceiros - o governo não pode, portanto, concorrer por iniciativa própria. “Caso essa indicação espontânea ocorra permitirá, principalmente, que o povo brasileiro seja reconhecido pelo seu espírito e esforço de ajuda humanitária”, disse a Casa Civil.

Desde o início da Operação Acolhida, em 2018, 265 mil venezuelanos ingressaram no Brasil e foram regularizados para permanecer pela Acolhida, segundo dados do governo. O Brasil é o quinto principal destino do êxodo na América do Sul. / COLABOROU TÂNIA MONTEIRO

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