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Miguel Reale: Variações sobre democracia e mídias

Por Agencia Estado
Atualização:

Este é o último artigo do jurista Miguel Reale publicado no jornal O Estado de S. Paulo, dia 25 de março de 2006. Volta e meia se pretende substituir a democracia indireta pela direta, entendendo-se que esta seria a única e legítima como forma de governo do povo para o povo. Tudo depende da palavra povo, que ora se entende como um corpo social único e indivisível, ora como um conjunto de relações distintas que se organizam finalizando um objetivo comum. A idéia do povo como único e indivisível provém de errôneo pensamento grego, que, na realidade, era uma aristocracia, excluídas da cidadania que eram a classe dos escravos e a das mulheres. A democracia indireta corresponde mais à realidade social, como um conjunto de situações interligadas em uma rivalidade de interesses representados pelos partidos políticos. A idéia rousseauniana de uma unidade corpórea solidariamente jamais configura a realidade social, a qual é sempre uma correlação plúrima de forças e de poderes. Há sempre divisões no corpo social, no qual cada uma delas representa a soma de interesses e valores, cujo valor maior é a correlação unitária-formal do todo. Como é que as partes distintas se distinguem e se correlacionam é, a meu ver, no fundo, a história da democracia, sendo as suas expressões iniciais até nossos dias. É a natureza dos interesses que, ao longo da História, nos dá as diferentes formas de democracia indireta, ora determinada pelas diferenças pessoais de classe, ora pela variação dos interesses em jogo. É a razão pela qual toda democracia indireta se diferencia pela ordem dos valores, deixando de ser democracia quando se constitui um único conjunto unitário de interesses sociais, especialmente de caráter econômico. Quase toda vez que há uma conjugação de interesses diversificados, surge forma diversa de expressão e comunicação do que lhe é próprio, em função e na medida do processamento técnico alcançado, com distintas agremiações. É o que se percebe plenamente, por exemplo, quando advém uma unidade de fins econômicos comuns, tal como se deu com a fundação da Economia Política moderna, com Adam Smith, sob a categoria básica de valores. Não é por acaso que o início da economia industrial aparece, se conhece e se intitula como estrutura e funções de valores. Essa estrutura de valores de início se apresenta como ilustração de interesses dominantes, como mídia inicial que é o jornal, o qual se caracteriza pelo predomínio de modos de ser e de agir, como condutor de opinião. O certo é que, por mais que se queira falar em equilíbrio de força e de expressão, há sempre um grupo dominante, que dirá a nota prevalecente ou determinadora do jornal, podendo-se dizer que a cada tipo de mídia corresponde uma determinada forma de jornal. À plenitude das formas democráticas corresponde uma multiplicidade de textos do jornal, com a pregação distante de idéias e programas. Às vezes, procura-se diversificar a situação, como, por exemplo, quando finalidades de ordem religiosa assumem o caráter político, como acontece no Brasil, onde grupos protestantes se afeiçoam, ou melhor, se revestem de estruturas políticas. Dessarte, os partidos políticos assumem características diversas, as quais significam diferenças de ordem religiosa de que são verdadeiras denominações de correntes partidárias. Nesse caso, os jornais assumem feições fictícias, que guardam apenas a aparência de mídia política. São diversas, é óbvio, as diversidades dos jornais, elegendo cada um deles orientações ideológicas diversas, a cuja luz os fatos sociais são avaliados. Os grandes jornais tomam, nesse ponto, posição nítida, apresentando os fatos com objetividade para publicá-los segundo suas diretrizes programáticas. Nem faltam os jornais-camaleão, ajustando-se a demais circunstâncias, sem a firmeza de uma diretriz doutrinária. O normal seria que a mídia estivesse sempre a serviço da democracia, apresentando os fatos sociais, notadamente os partidários e econômicos, segundo seus contornos reais, evitando-se um cotejo entre as posições doutrinárias, infelizmente, em contraste. O grau de política cultural de um país se mede pelo valor de jornais que apresentam pontos de vista divergentes, cada um deles podendo revelar ou firmar o caminho mais justo a ser seguido. O importante é que a mídia mantenha o eleitorado bem informado, no domínio dos fatos e das opiniões, assinalando vias de ocupação e de ação correspondente à solução democrática mais aconselhável em dado momento histórico. Há uma reserva mnemônica essencial, que consiste em tornar permanente, na mesma pauta dos eleitores, os fatos e atitudes caracterizadores de posição democrática x, y e z. O País passou, durante três anos, por um caos moral sem precedente, tanto do ponto de vista ético no plano político, quanto no da dignidade pessoal; todavia, a maioria indecente preservou o mandato de parlamentares que praticaram atos indignos, ferindo o dever. Portanto, quando chegamos à hora do novo pleito eleitoral, é absolutamente necessário que a mídia traga, continuamente, à tona os nomes dos políticos que se conduziram em conflito com as normas democráticas. Depende, no fundo, nossa democracia da atitude de nossa mídia, em ponto tão decisivo, ela que tem sido o estupendo detetive e fiscal do bem público!

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