Menos de 10% dos municípios onde resta Mata Atlântica têm plano de conservação

Previsto na lei do bioma há 15 anos, planejamento para evitar desmate é exceção entre cidades; parcerias entre poder público e sociedade civil organizada buscam reverter quadro

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Por Júnior Moreira Bordalo e Daniel Rocha
5 min de leitura

Agricultor em Caxias do Sul (RS), Charles Venturin mantém em seu sítio uma “área estratégica” de Mata Atlântica. Um dos primeiros produtores rurais da cidade a seguir as orientações do Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica (PMMA), criado em 2012, ele aderiu a um cadastro ambiental e conseguiu informações valiosas do próprio terreno. 

“Conheci exatamente as áreas que tinha de preservar e, ao mesmo tempo, lugares onde posso cultivar”, disse o agricultor, explicando que conseguiu melhorar o gerenciamento do terreno dos Venturin rumo à produção orgânica e sustentável de uva, tomate e caqui. Charles, seus pais e a família do irmão cuidam juntos da produção em 7,5 hectares. Mas a experiência do caxiense é exceção. Menos de 10% das cidades onde a Mata Atlântica ainda resiste no País têm um plano municipal de conservação. 

Charles e o filho, Enzo, de 8 anos Foto: Charles Venturin/Arquivo pessoal

Levantamento da Fundação SOS Mata Atlântica mostra que, 15 anos depois da aprovação da lei que trata da preservação do bioma e orienta a criação dos planos, somente 271 (8%) dos 3.429 municípios brasileiros onde ainda restam áreas de floresta têm seu PMMA em execução ou elaboração. 

O plano não é um instrumento obrigatório, mas, construído em parceria entre poder público e sociedade civil, orienta os municípios e a população sobre como preservar e recuperar o bioma por meio de ações públicas e privadas, conciliando o desenvolvimento econômico e social da região.

Segunda cidade mais populosa do Rio Grande do Sul, atrás apenas da capital, Porto Alegre, Caxias do Sul é responsável por 70% do mercado hortifrutigranjeiro do Estado. A cidade elaborou seu PMMA, em 2012, por iniciativa do Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente. Na época, como parte do plano, foi determinada a realização de um inventário da arborização urbana e o Cadastro Ambiental Rural. 

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Reserva

O cadastramento, realizado com suporte técnico da prefeitura de Caxias a partir de 2014, delimitou, por exemplo, áreas de preservação permanente e reserva legal de Mata Atlântica no município. 

Para Venturin, submeter seu sítio ao processo - assim como garantir uma área preservada - foi essencial. Dos 28 hectares do terreno, ele usa 7,5 nos cultivosprotegidos. E não é difícil demonstrar o impacto da reserva na prática. “Por exemplo, a praga da mosca-da-fruta, que é muito comum na região”, afirmou o agricultor. “Consigo ter um controle por causa da minha reserva de mata. Se ela (mosca) encontra o local para colocar o ovo, não precisa vir na minha fruta. Conseguimos coexistir com produção e preservação.”

Participante direta da elaboração do plano de Caxias, a bióloga Vanise Sebben relembra que, de início, a ideia de cadastramento provocou reações negativas. “Houve resistência do Sindicato Rural Patronal, que dizia que os agricultores não deveriam fazer o cadastramento porque seria um instrumento a mais de fiscalização. Eles não viam que o objetivo era a preservação”, afirmou Vanise. “Tivemos esse desafio do convencimento, explicar o que era. Existia um movimento contra muito grande.”

Caxias tem 6.252 propriedades mapeadas, das quais 86% apresentam a reserva legal da Mata Atlântica (equivalente a 20% da área total). “Como somos muito católicos, nos unimos até com as paróquias para falar na missa da importância de preservar o meio ambiente e que eles poderiam fazer o cadastro sem medo”, contou Vanise. “E deu certo. Somos um dos municípios que mais têm reserva legal do Brasil. Sim, a gente consegue preservar e produzir.”

Propriedade de Charles Venturin em Caxias do Sul (RS); agricultor e família mantêm reserva de Mata Atlântica em sítio produtor de uva, tomate e caqui Foto: Arquivo pessoal/Charles Venturin

Perdas

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Atualmente, restam apenas 12,4% da mata atlântica original no País. Entre 2019 e 2020, o desmatamento avançou cerca de 13 mil hectares e, entre os municípios recordistas de perdas, nenhum tem PMMA. “O plano ajuda os municípios a reconhecer onde há Mata Atlântica, quais áreas serão protegidas e quais serão restauradas”, afirmou o diretor de Conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica, Luis Fernando Guedes Pinto. “A ausência do plano fortalece o desmatamento.”

Do total de 3.429 municípios brasileiros inseridos nesse bioma, 138 têm planos prontos, 63 cidades estão em elaboração e 70 estão em processo de implementação de seus planos. 

Para Guedes Pinto, a baixa adesão é um retrato da falta de capacidade técnica e de conhecimento sobre o plano por parte dos gestores públicos. “Nem todas as prefeituras sabem que podem criar seus planos municipais. Há cidades que até têm esse conhecimento, mas não sabem como elaborar.” 

Ele destaca outro entrave para a elaboração dos planos, a ausência de conselhos municipais de meio ambiente. Segundo ele, trata-se de mecanismo crucial para a participação da sociedade civil: “O projeto (plano de conservação) pode até ser elaborado pelo poder público, mas precisa necessariamente ter o aval do conselho”.

A Lei da Mata Atlântica, de 2006, instituiu a elaboração do PMMA para que as cidades tenham um diagnóstico adequado do bioma e possam avançar nas diretrizes e planejamento das políticas públicas, mas como referência também para atuação da iniciativa privada e da sociedade como um todo. 

Para a engenheira sanitarista e ambiental e especialista em planos municipais de conservação, Estela Boscov os PMMAs são ferramentas essenciais, sim, mas sua implantação enfrenta também uma barreira cultural, a ideia de que a natureza no Brasil é "infinita". “Nós nos enxergamos como um País com um potencial incrível de recursos naturais”, disse Estela. 

No esforço de apoiar cidades a criarem as condições necessárias para construir seu próprio plano de conservação e desenvolvimento sustentável, uma parceria entre a Fundação SOS Mata Atlântica e a Suzano S.A vai financiar organizações ambientalistas sem fins lucrativos de 35 cidades dos Estados de SP, ES, BA e MG para que atuem em parceria com o poder público e a sociedade civil na construção do planejamento local. O resultado do edital deve ser divulgado nos próximos dias. As entidades selecionadas terão 15 meses para desenvolver seu projeto. 

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Também em parceria com uma série de outras instituições, incluindo a ONU, o governo federal, a Frente Parlamentar Ambientalista, a Federação Nacional de Conselhos do Meio Ambiente e o governo da Alemanha, a SOS Mata Atlântica mantém um portal de monitoramento dos Planos Municipais de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica. 

Para Mário Mantovani, conselheiro da fundação, o sucesso de Caxias do Sul está no fato de a população ter entendido a necessidade do plano. “A história do plano é que você traz aquilo que está na Constituição para a realidade do município”, afirmou Mantovani. “O pessoal falava: ‘Ah vocês querem por a lei e não vou poder fazer nada’. E não. A lei permite o uso e proteção. Só incide na vegetação que foi regulamentada Estado por Estado, reconhecendo a variedade dos tipos que compõem a Mata Atlântica.”

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