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Memória das garras do condor

Livro sobre o seqüestro de dois uruguaios há 30 anos revive os duros tempos da caça à esquerda no continente

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Por Gabriel Manzano Filho
Atualização:

Era uma vez, nos tempos da repressão, um apartamento em Porto Alegre e, dentro dele, duas armadilhas. A primeira delas, montada por quatro ou cinco fiéis servidores das ditaduras brasileira e uruguaia que aguardavam ao lado de sua isca - a própria dona da casa, a militante esquerdista Lilian Celiberti - a chegada de um chefão da resistência uruguaia. A idéia era prendê-lo e levá-lo imediatamente a Montevidéu. A segunda era o truque tentado por Lilian no telefonema para marcar o encontro. Ela passou a senha combinada, uma palavra crucial para que o outro lado entendesse que ela estava sob domínio do inimigo. "Não venha", significava o convite. Deu certo. O chefão não foi. Mas eis que soa a campainha, Lilian vai abrir... e são dois jornalistas! Um experiente repórter e seu fotógrafo, trabalhando para uma grande editora de São Paulo. Pior que isso: o repórter conhecia a dona da casa. Era uma sexta-feira, 17 de novembro de 1978. Assim que foi encostado um revólver na testa do repórter, no apartamento 110 da Rua Botafogo, 621, começou um interminável jogo de gato e rato entre democracia e ditadura na América Latina. Lilian e um colega de militância, Universindo Diaz, sumiram na fronteira e foram penar nas masmorras do Uruguai. O repórter que tocou a campainha e logo foi liberado, o gaúcho Luiz Cláudio Cunha, chefe da sucursal da revista Veja em Porto Alegre, embrenhou-se por todas as pistas, fez um dublê de jornalista e personagem do caso e por fim toda a grande imprensa entrou na história. Além do sumiço de Lilian e Universindo - e com eles dois filhos menores - o episódio deixava uma pergunta no ar: por que o Brasil abria mão de sua soberania e deixava policiais de outro país entrar em seu território para seqüestrar pessoas que estavam sob proteção de suas leis? É uma pergunta de um tempo de horrores, 30 anos atrás. Ao revivê-la agora, num livro de 472 páginas, o jornalista que viveu a história produziu um texto que já chega às livrarias como referência de um tempo. Operação Condor: O Seqüestro dos Uruguaios, que a LPM lança na sexta-feira na Feira do Livro de Porto Alegre, é um relato corajoso, uma crônica precisa, às vezes pesada, do medo vivido nas ruas e da infâmia dos porões dos anos 70. O livro traz dois consistentes apêndices, O Uruguai Seqüestrado, sobre as barbaridades que se praticavam no país vizinho, e Operação Condor, em que o autor retoma a polêmica sobre o papel do Brasil nessa famosa aventura de combate ao comunismo no continente. Cunha entrou na história porque o próprio chefão esperado no apartamento lhe dera as informações ao telefone, sem se identificar. Era Hugo Cores, que presidia um pequeno e radical partido de esquerda, o Partido de la Victoria del Pueblo (PVP). Para checar a dica levou consigo o fotógrafo J. B. Scalco, também da Editora Abril - e dali por diante os dois sustentaram a investigação por 86 semanas. O episódio culminou com o reconhecimento judicial da culpa da polícia brasileira, algumas punições e, para os dois, um Prêmio Esso, entre outros reconhecimentos. As circunstâncias fizeram de Cunha, ao mesmo tempo, narrador e personagem - o que fez de seu livro um misto de documento histórico e denúncia indignada. Ao longo dos 30 capítulos ele investiga, compara, ataca, desabafa. Faz visitas a lugares estranhos, recorre a truques para tirar fotos de suspeitos, viaja, provoca ministros, tudo para descobrir quais eram os homens escondidos atrás da porta naquela sexta-feira. ?DIGNIDADE? É uma caça demorada, mas ele chega lá. Traz à luz os feitos do delegado Pedro Seelig, uma espécie de "Fleury dos Pampas". Identifica o investigador Didi Pedalada, localiza testemunhas. E reproduz frases memoráveis como esta do então ministro da Marinha do Uruguai, Hugo Márquez: "A diretriz dada a todos os membros deste governo tem sido a de conservar a dignidade do ser humano, de modo a não infligir castigos corporais que não sejam humanamente suportáveis." Na caminhada o autor consegue uma preciosidade - a revelação de que o autor da Lei Falcão não foi o então ministro da Justiça, mas o governador gaúcho Synval Guazzelli. Revela também a fúria do ministro-chefe do SNI, general Octávio de Medeiros, que, ao saber da confusão com o jornalista no apartamento, explode: "Esses caras fizeram merda! São uns imbecis!" Na descida às sombras da Operação Condor, o livro revela dados que nem a CIA tinha em seus documentos. É o caso dos nomes de dois oficiais do Exército brasileiro que estiveram em Santiago, no Chile, em novembro de 1975, no encontro que deu vida à Operação Condor - o tenente-coronel Flávio Demarco e o major Thaumaturgo Sotero Vaz. Como explica o autor, Brasil e Chile tinham naqueles tempos anticomunismos incompatíveis: a ditadura brasileira, a dois meses da prescrição do Ato Institucional nº 5, planejava uma distensão e a do Chile queria sair matando. Ernesto Geisel não queria misturar seu serviço de inteligência com os demais do continente. O resultado foi que, na Operação Condor, os agentes brasileiros participaram - com entusiasmo - das fases 1 e 2, que incluíam trocas de informações e de prisioneiros, mas não da fase 3, que programava assassinatos. Era um horror um pouco menor. Mas nele cabiam coisas como esta mensagem, remetida pelo Dops de Rio Grande (RS) aos superiores em Porto Alegre: "Informamos que Oscar Perez foi preso pelo Exército a cerca (sic) de 2 meses atras vg e entregue mediante recibo logo em seguida a policia uruguaia pt sds - bel. Alamyr Madruga - Del. Polícia." Ou seja, havia ditaduras médias e outras duríssimas. Mas todas admitiam o escambo de gente, com os devidos atestados de seqüestro.

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