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Marco Aurélio Mello: Um estilista da provocação, na hora do adeus à Corte

Famoso por seu perfil 'incendiário', ministro – que sai em julho do STF – não se arrepende do que já disse a réus e a colegas

Por Rafael Moraes Moura
Atualização:

BRASÍLIA – Em julho de 2000, enquanto ocupava interinamente a presidência do Supremo Tribunal Federal (STF) no período de recesso, o ministro Marco Aurélio Mello mandou soltar o banqueiro Salvatore Cacciola. Preso sob acusação de fraudes contra o sistema financeiro, o ex-dono do Banco Marka acabou fugindo para a Itália. 

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Apesar dos pedidos de extradição do governo brasileiro, Cacciola passou sete anos foragido na Europa, até retornar ao Brasil em 2008 e ser levado para um presídio em Bangu. “Sustento que o acusado, enquanto a culpa não está formada mediante um título (sentença) do qual não caiba mais recurso, tem o direito natural de realmente fugir”, disse Marco Aurélio à época. 

O episódio ilustra algumas características marcantes do atual decano do STF: espírito destemido, decisões polêmicas e uma capacidade inesgotável de produzir provocacões. 

O ministro Marco Aurélio Mello, decano do STF, com aposentadoria marcada para julho Foto: GABRIELA BILÓ / ESTADÃO

O caso Cacciola não foi o único em que Marco Aurélio contrariou os integrantes do Supremo e despertou polêmicas na Justiça. Em 2004, autorizou a interrupção de gravidez em casos de feto sem cérebro. Doze anos depois, em outra decisão individual, afastou o senador Renan Calheiros (MDB-AL) da presidência do Senado após o emedebista ter sido colocado no banco dos réus. No ano seguinte, mandou soltar o goleiro Bruno Fernandes, acusado de mandar matar a modelo Eliza Samudio. 

E não ficou por aí. Na véspera do recesso, em dezembro de 2018, mais uma decisão bombástica: em um gesto de protesto com a demora do plenário do STF em decidir sobre a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, o ministro suspendeu por conta própria a execução antecipada de pena. Em outubro do ano passado, mandou soltar André do Rap, considerado um dos nomes mais importantes no comando do tráfico de drogas do Primeiro Comando da Capital (PCC) em São Paulo. Todas as decisões, inclusive as que beneficiaram Cacciola e André do Rap, acabaram derrubadas pelos colegas. 

“Nunca coloquei a cabeça no travesseiro para me arrepender de um voto ou decisão proferida. Devo ter errado porque sou ser humano, mas errei segundo o meu convencimento”, disse o ministro ao Estadão. “Nunca joguei para a plateia. Sempre atuei segundo o meu convencimento a partir de ciência e consciência.” 

Incendiário

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O perfil incendiário do decano, que se aposenta em julho, destoa do estilo de Celso de Mello, seu antecessor como ministro mais antigo da Corte. Celso de Mello era conhecido pelo espírito apaziguador e chamado a atuar como bombeiro em crises de grandes proporções. Marco Aurélio tem uma personalidade mais direta, dura, marcada por frases de efeito – e por, muitas vezes, trazer à tona a sujeira que havia sido varrida para baixo do tapete. Frequentemente é voto vencido em julgamentos no plenário. 

Esse jeito de ser lhe rendeu o apelido de “ferrinho de dentista”, que ganhou do ex-ministro Nelson Jobim, em alusão aos aparelhos cirúrgicos desses profissionais. “Em todo o plenário é fundamental alguém atento e com capacidade de ver e ressaltar os detalhes. Daí o chamei de ‘ferrinho de dentista’ porque ele ia ao ponto mínimo e não deixava passar nada”, explicou Jobim à reportagem. Marco Aurélio considera a alcunha um elogio: “Digo coisas que os colegas não querem ouvir. A autenticidade é a mola mestra da República”. 

A autenticidade do ministro veio à tona em inúmeras ocasiões nas sessões do Supremo, como no julgamento do mensalão. “Não suponha que todos neste tribunal sejam salafrários, e só Vossa Excelência seja uma vestal”, disse Marco Aurélio, em fala endereçada ao então presidente da Corte, Joaquim Barbosa. Em outra sessão, o alvo foi Luís Roberto Barroso, que havia tomado posse três meses antes. “Vejam que o novato parte para a crítica ao próprio colegiado. Não foi crítica velada, foi uma crítica direta”, afirmou. 

Desafeto

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Seu maior desafeto no Supremo, no entanto, é Gilmar Mendes, com quem mantém relação de “inimizade”. A expressão foi usada em despacho assinado por Marco Aurélio há dois anos, quando se declarou suspeito na análise de uma ação que contestava decisão de Gilmar. “Caso estivéssemos no século XVIII, o embate acabaria em duelo e eu escolheria uma arma de fogo, não uma arma branca”, desabafou o decano do STF em entrevista à Rádio Guaíba. “Eu costumo na vida virar a página, até hoje na convivência em plenário não só virei uma página. Eu não falo com ele”, diz hoje ao Estadão.

Os bate-bocas foram transmitidos ao vivo pela TV Justiça, criada em 2002 durante o período em que presidiu o tribunal. A emissora ganhou vida a partir de lei sancionada pelo próprio ministro, quando ocupou interinamente a presidência da República. “Sanção e veto (à lei) são seus”, lhe disse Fernando Henrique Cardoso em jantar no Palácio da Alvorada. A lei acabou sancionada por Marco Aurélio. “Por isso que eu digo que eu bati o corner (escanteio), e cabeceei a gol”, compara o ministro, ao chamar o gesto de FHC de “democrático e republicano”. 

O magistrado avalia que o canal aproximou o Judiciário da sociedade, e vice-versa, permitindo que os cidadãos brasileiros acompanhassem as atividades do plenário do STF. “O que talvez possa ter ocorrido é o alongamento (das sessões) e uma visão distorcida dos votos por alguns colegas que às vezes gostam muito da própria voz”, alfineta.

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À antiga

Juiz à moda antiga, o ministro tem o hábito de levar a papelada dos processos para casa – não é muito entusiasta de inovações tecnológicas e só recentemente abraçou o plenário virtual, uma ferramenta tecnológica que permite a análise de casos a distância, numa plataforma online. 

Antes de chegar ao STF por indicação de seu primo, o ex-presidente Fernando Collor, Marco Aurélio trabalhava com uma máquina de datilografar. Com o tempo, passou a utilizar um gravador, onde dita o voto e repassa o áudio a uma auxiliar do gabinete, que transcreve o conteúdo. “A mulher que mais me ouve na vida não é a minha mulher (a desembargadora Sandra de Santis, com quem é casado há 48 anos), é a Cláudia, analista do tribunal, que degrava (o material). Enquanto eu faço dez votos, creio que um colega não consegue fazer um.” 

As peculiaridades também ficam evidentes na relação com os integrantes da Corte. Alguns ministros têm o hábito de enviar aos outros gabinetes o voto que será lido no julgamento, para permitir uma leitura aprofundada dos colegas, com antecedência. Marco Aurélio, no entanto, se recusa a saber previamente como os relatores vão se posicionar. “Sou um homem facilmente sugestionável e fico com receio de sucumbir à tentação. Eu quero estar solto, ser absolutamente espontâneo, não faço teatro”, afirma.

Morador de Brasília desde 1981, o ministro vive em uma casa no Lago Sul, bairro nobre da capital federal. É um terreno bucólico que ele comprou décadas atrás, antes de a região se valorizar no mercado imobiliário, com espírito de sítio - vacas, patos, galinhas dão o ar da graça ali. De perfil garantista, ele mantém soltos não apenas alvos da Justiça, mas os próprios passarinhos, que ficam fora da gaiola e se alimentam de pedaços de mamão e banana estrategicamente colocados em árvores. “Ficam como eu sou, absolutamente livre.”

Perto de se despedir do STF, Marco Aurélio considera o advogado-geral da União, André Mendonça, um “grande quadro” para herdar a sua cadeira (a partir de julho). E não vê riscos à ordem democrática. “Não há espaço para saudosismo ou retrocessos. E os ares democráticos vieram pra ficar. A minha crença é inabalável na democracia brasileira.”

ISTO É MARCO AURÉLIO MELLO

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Confira algumas das frases mais marcantes da carreira do atual decano do STF, que se aposenta em julho 

“Aos 66 anos, não posso acreditar em Papai Noel.” (Em setembro de 2012, ao votar para condenar uma ex-gerente financeira de empresa do publicitário Marcos Valério no julgamento do mensalão. Para o ministro, a funcionária tinha ciência da atuação do grupo criminoso.)

“Não suponha que todos neste tribunal sejam salafrários, ministro, e só Vossa Excelência seja uma vestal (figura casta, honesta).” (Frase dirigida ao então presidente do STF, Joaquim Barbosa, durante o julgamento do mensalão, em novembro de 2012.)

“Vejam que o novato parte para a crítica ao próprio colegiado, como partiu em votos anteriores. No que chegou a apontar que não decidiria da forma na qual nós decidimos. Não foi uma crítica velada, foi uma crítica direta.” (Ao rebater fala do ministro Luís Roberto Barroso, recém-chegado à Corte, no julgamento de recursos do mensalão, em setembro de 2013.)

“Em relação a mim, ele (Gilmar Mendes) passou de todos os limites inimagináveis. Caso estivéssemos no século XVIII, o embate acabaria em duelo e eu escolheria uma arma de fogo, não uma arma branca.” (Comentário feito em entrevista à Rádio Guaíba, em setembro de 2017, sobre a relação com o ministro Gilmar Mendes.)

“No pico de uma crise, um ato deste poderá incendiar o País.” (Ao comentar a iminente prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após condenação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em janeiro de 2018.)

“Presidente, novamente, advogado se dirige aos integrantes do tribunal como vocês. Há de se observar a liturgia!” (Ao reclamar do pronome pessoal de tratamento usado por advogados para se referir aos ministros da Corte, em novembro de 2019.)

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“Não é possível que todos estejam errados, e só o presidente da República esteja certo.” (Em março de 2020, ao criticar a atitude de Bolsonaro de sair às ruas e cumprimentar populares mesmo diante do avanço da pandemia.)

“Tudo lamentável, ante a falta de urbanidade. Fiquei perplexo.” (Ao comentar, em maio de 2020, o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro com o primeiro escalão do governo, marcada por palavrões, ameaças e ataques a instituições.)

“Constatamos tempos estranhos, de controvérsia política, crise econômico financeira e efeitos de pandemia sem precedentes. O horizonte é sombrio. Fora da Carta da República não há salvação, apenas arbítrio e autoritarismo.” (Durante a posse de Luiz Fux como presidente do STF, em setembro do ano passado. A solenidade foi acompanhada por Bolsonaro.)

“Já disse que Vossa Excelência é autoritário. Vossa Excelência tudo pode, Vossa Excelência não submete ao colegiado proposta de um colega. Muito bem, paciência, os tempos são estranhos e Vossa Excelência colabora para serem mais estranhos ainda.” (Em março deste ano, ao criticar a postura do presidente do STF, Luiz Fux, de não discutir no plenário a substituição da prisão do deputado Daniel Silveira por medidas cautelares.)

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