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Livro analisa 1.554 discursos de Lula

Falas do presidente constituem a matéria-prima do jornalista Ali Kamel

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Por Roldão Arruda
Atualização:

O Brasil já teve presidentes que detestavam falar em público. O general Emílio Garrastazu Médici, que comandou a nação entre 1969 e 1974, foi um. "Presidiu o País em silêncio, lendo discursos escritos pelos outros", anotou a seu respeito o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai na direção oposta. Ele discursa, dá entrevistas e fala no rádio com tanta voracidade que tem chance de acabar o seu governo dizendo que "nunca antes neste país alguém discursou tanto..." Todas essas falas presidenciais constituíram a matéria-prima do jornalista Ali Kamel na realização do livro Dicionário Lula - Um Presidente Exposto Por Suas Palavras (Editora Nova Fronteira), que está chegando às livrarias. É uma iniciativa ousada e bem executada de se definir o que realmente pensa o primeiro mandatário, a partir do que diz. O livro põe abaixo ideias preconceituosas, confirma com fartura de informações coisas que alguns acadêmicos já sabiam e, sobretudo, expõe o homem de corpo inteiro, com suas contradições, crenças, estratégias políticas. Kamel, que é diretor da Central Globo de Jornalismo, utilizou apenas as falas de improviso do presidente - nos períodos de janeiro de 2003 a maio de 2008 e de setembro de 2008 a março de 2009. Renderam um cartapácio de 1.554 textos, que ele triturou e classificou, garimpando os termos mais significativos e recorrentes da retórica lulista. Assim surgiu o dicionário do título - uma obra de referência, com 354 verbetes, de ?aborto? a ?vontade?, passando por ?elite?, ?José Serra?, ?mensalão?, ?meio ambiente? e outros. O leitor deseja saber como vê a imprensa? O verbete a respeito reúne trechos de treze discursos e entrevistas sobre o assunto. É um caso típico de desassossego, ou, como diz Kamel, "um caso de amor aparente e mágoa mal resolvida". O presidente elogia aqui e ali, mas sempre acrescenta um senão. "Eu não brigo com a imprensa, eles brigam comigo", disse no Paraná, em 2007. "A imprensa não publica aplausos, só vaias", resmungou para um jornalista português, um ano depois. Se o leitor pular do verbete ?imprensa? para ?Congresso? e ?Judiciário?, verificará um processo semelhante. Lula diz que são indispensáveis para a democracia, mas quase sempre acrescenta um senão. O Congresso, por exemplo, errou ao cassar o mandato de seu amigo José Dirceu, "sem ter provado alguma coisa contra ele". O verbete mais alentado é o que fala de Lula. Não pela preferência de Kamel, mas porque Lula adora falar dele mesmo. São 25 páginas, uma mini autobiografia, na qual reluzem as passagens da infância pobre e da vida operária. O presidente tem noção clara da importância de sua história - improvável história de um menino miserável que se torna presidente - para aproximar e estimular as pessoas e consolidar sua imagem. Em 2006, diante da elite econômica do planeta, em Davos, declarou: "Sou de uma terra onde, se as pessoas não morrem até completar um ano de idade, já é um milagre. E eu não morri, cheguei a presidente." PREDESTINADO O dicionário é antecedido por um texto com a análise do material recolhido. Kamel chama a atenção para o sentimento de predestinação que inunda o presidente - como se o fato de ser o primeiro operário a morar no Planalto já fosse suficiente para tornar seu governo melhor. Daí o excesso de expressões como ?nunca antes na história?, ?desde Cabral?, ?desde a Proclamação da República?. No conjunto de 1.554 textos, Lula recorre a esses bordões em 880. Kamel também investiga se há coerência nas falas de Lula. Constata que é coerente em alguns casos; e incoerente na maioria das vezes. Exemplo de coerência é a insistência em dizer que seu governo cuida dos pobres. De cada dez discursos, seis contêm referências ao combate à pobreza. Mas é incoerente na definição de políticas sociais. No início do governo, criticou seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, por distribuir dinheiro aos pobres por meio de vales, como o auxílio para o gás e o Bolsa-Escola. Isso acomoda as pessoas, desestimula os pequenos lavradores a plantar, dizia Lula em 2003. "Tem gente que não quer mais isso (plantar) porque prefere ficar esperando o vale isso, o vale aquilo." Passados sete meses, criou o Bolsa-Família, ampliando a transferência de renda. Mas isso não acomoda as pessoas? "Não, pelo contrário. O acesso às necessidades básicas aumenta a autoestima", dizia o mesmo Lula em 2007. O homem que emerge da análise de Kamel é um brasileiro médio, mais ou menos crente em Deus, que adora falar da mãe, exaltando o modelo tradicional de família". Seu discurso político é fluido, conciliador e pragmático. Acredita que seu papel é ajudar o operariado a satisfazer as três coisas com que sonha na vida. E quais são elas? "Uma casa, casar com uma mulher bonita e ter um bom carro", como definiu em discurso diante de operários da Ford, em 2007. Alguém consegue ver nessa afirmação um político de esquerda, interessado na luta de classes, como já tentaram retratá-lo? O autor sabe que sua análise não é definitiva - e que a melhor parte virá quando os discursos de Lula puderem ser cotejados com os resultados de seu governo. Seu livro, porém, constitui uma agradável surpresa na área da análise política. Lula não é o primeiro governante a se apresentar como predestinado (Jânio Quadros subiu como foguete na vida político fazendo isso), nem o primeiro pai dos pobres (Getúlio Vargas ainda ocupa o primeiro lugar no panteão). Ele é imbatível, porém, no campo da linguagem. Kamel mostra que o ex-menino pobre sabe usar como ninguém a linguagem das ruas - com metáforas simples e vocabulário de fácil compreensão - para falar com os brasileiros. Nunca, jamais na história, houve presidente que falasse de modo tão popular como ele.

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