Ives Gandra chama de ‘ignorante em Direito’ quem diz que artigo 142 permite golpe

Jurista diz que sua interpretação sobre Constituição está sendo distorcida por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e também pelos adversários do governo

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Por Vinícius Valfré
Atualização:

O jurista Ives Gandra da Silva Martins afirmou ao Estadão que sua interpretação sobre o artigo 142 da Constituição está sendo distorcida pelos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e também pelos adversários do governo. Segundo ele, seu entendimento é o de que “não há, no artigo, qualquer brecha para fechamento de Poderes”.

“Quem fala que permite golpe é ignorante em Direito. Tanto da situação quanto da oposição. As Forças Armadas não têm condição de dar golpe. Se têm, estão violando a Constituição e elas não farão nunca isso”, afirmou o jurista, que atuou como consultor jurídico dos deputados que escreveram a Constituição de 1988.

Jurista Ives Gandra da Silva Martins Foto: Filipe Araujo/Estadão

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A interpretação de Ives Gandra ao artigo da Constituição é, contudo, mais flexível do que a de outros juristas, para os quais a Carta Magna não permite que as Forças Armadas sejam acionadas sequer como poder moderador.

O nome do jurista tem sido mencionado por bolsonaristas desde que o presidente divulgou nas suas redes sociais um vídeo no qual ele comenta o artigo da Constituição. Nele, o jurista afirma que Bolsonaro “teria o direito de pedir às Forças Armadas” caso não perdesse o recurso à decisão do Supremo que o impediu a nomear o delegado Alexandre Ramagem para o comando da Polícia Federal.

Na conversa com o Estadão, Gandra criticou a presença de Bolsonaro em manifestações antidemocráticas, como a que ocorreu no último domingo em Brasília, e a conduta do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que, numa mensagem enviada a interlocutores, afirmou que os bolsonaristas “desprezam a liberdade e odeiam a democracia”.

“O presidente não tinha que estar em manifestações em que se fala de fechamento de Congresso, do Supremo (...) O ministro Celso de Mello não tinha nada que fazer aquelas considerações já que ele é relator de processo contra o presidente”, afirmou.  A seguir a entrevista:

Como o senhor avalia as leituras que têm sido feitas à interpretação que o senhor dá ao artigo 142?

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Eu nunca vi tanta gente a favor ou contra o artigo 142 interpretarem com tanta superficialidade. Ele proíbe qualquer golpe de estado, proíbe intervenção nos Poderes, apenas repõe a lei e a ordem pontualmente. O artigo 142 cuida de três funções: defender pátria, as instituições democráticas e, a pedido de qualquer dos Poderes, garantir a lei e a ordem. Essa terceira parte só permitiria, digamos, uma intervenção pontual, não para romper, mas pra repor a lei e a ordem, se houvesse um conflito insuperável entre os Poderes.

Pode me dar um exemplo de quando poderia ser acionado, na visão do senhor?

Vamos admitir que o STF invada competência do Legislativo e invente de fazer uma lei que não pode fazer. O presidente do Senado diz: – Não aceito. Essa lei não vale e eu faço um decreto legislativo anulando a lei do STF. Se o Supremo mandar prender o presidente do Senado, ele pode recorrer às Forças Armadas dizendo: – Olha, aqui está no artigo 49 inciso 11 que cabe ao Legislativo zelar pela sua competência normativa.

Mas conflitos sobre interpretação de leis e decisões são frequentes.

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O artigo 142 é para se o conflito for insuperável, e só para aquele ponto, e só para repor a lei e a ordem. Vejo pessoas dizendo: ‘ah, golpe militar’. Tem pessoas extremamente competentes dizendo isso porque não leram. “Estão querendo golpe”. Como querer golpe se é para repor a lei e a ordem, se houver conflito de Poderes? E mais: se o Poder Executivo fizer o pedido, nem o presidente pode presidir as Forças Armadas porque ele é parte do conflito. O que me impressiona é que a oposição diz: ‘golpistas, artigo 142, o que estão querendo é terminar a democracia’. Por outro lado, o pessoal favorável ao Bolsonaro diz “o artigo 142 permite golpe de estado”. Onde? É só ler o artigo e o título.

Esse artigo não pode ser lido como um incentivo à atuação das Forças Armadas?

As Forças Armadas são escravas da Constituição, do Estado de Direito. Quando esse dispositivo foi colocado na Constituição, foi para nunca ser utilizado, porque os poderes são harmônicos e independentes e nunca terão esse problema. Quem fala que permite golpe é ignorante em Direito. Tanto da situação quanto da oposição. As Forças Armadas não têm condição de dar golpe. Se têm, estão violando a Constituição e elas não farão nunca isso.

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Tem algum caso concreto no qual o artigo 142 poderia ser invocado, para que possamos entender o seu raciocínio?

O senador Delcídio (Amaral) foi preso. Não entro no mérito se merecia ou não. O artigo 53 diz que não se pode prender nenhum parlamentar sem autorização do Senado ou da Câmara. Para prender o Zé Dirceu teve autorização da Câmara. Vamos admitir que naquele momento o Renan Calheiros (presidente do Senado à época da prisão de Delcídio) dissesse: – Não admito, peça para devolver o Delcídio para cá. Os senadores poderiam reclamar dizendo que foi desrespeitado o artigo 53. Se fizessem, as Forças Armadas poderiam dizer: – STF, espere um pouco até que o Senado decida. Isso é tentar repor a lei e a ordem.

O senhor tem sido bastante citado ultimamente por apoiadores do presidente Bolsonaro. As menções cresceram após derrotas do governo no STF.

O meu nome tem sido utilizado utilizando frases isoladas, sem nunca lerem meus artigos, sem nunca lerem os livros que escrevi sobre isso. É uma matéria que sempre ensinei para os meus alunos de Direito Constitucional. O ministro Celso de Mello não tinha nada que fazer aquelas considerações já que ele é relator de processo contra o presidente. E por outro lado, o presidente não tinha que estar em manifestações em que se fala de fechamento de Congresso, do Supremo. O julgador não pode antecipar o que está pensando e o presidente não pode ter posições que podem dar a impressão de que ele estaria prestigiando quem seria favorável a fechamento do Supremo. Tenho impressão que estamos entrando numa emotividade, numa tentativa de choque ideológico entre direita e esquerda, entre Poderes, que nesse momento temos é que ter recuperação da economia depois de vencida a batalha contra o coronavírus.

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