Irreversível até que o sonho vença

P., 15 anos, baleada perto da escola, ficou tetraplégica

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Por Roberto Almeida e SÃO PAULO
Atualização:

O dia era para ser de festa em uma casa humilde do Jardim Elisa Maria, zona norte de São Paulo. A garotinha, porém, comemorava o seu aniversário de 7 anos timidamente, sem receber a atenção dos avós, abatidos. Antônio Pereira Lima, pedreiro, e Jaci Viana Bandeira, faxineira, ainda lamentam o que aconteceu há três meses com sua filha P., de 15 anos. A caminho da escola, em uma escadaria da favela, ela levou um tiro no pescoço. Está tetraplégica. P. escapou por milímetros de fazer parte das estatísticas mais preocupantes de São Paulo: o número de homicídios de jovens entre 15 e 29 anos. A bala, disparada pelo que ela considerava um amigo, atingiu duas vértebras e se alojou na medula. O motivo: ele queria namorá-la, mas ela não aceitou. Com o disparo, P. caiu, rolou a escadaria e foi socorrida por um motorista que passava pelo local. A cirurgia foi um sucesso, mas as seqüelas foram inevitáveis. Sente falta de abraçar a sobrinha - mais ainda no dia de seu aniversário - como sentiu falta de abraçar seu pai no Dia dos Pais. Jaci observa que sua filha era "boa moça". Estudava, saía com a irmã Renata para se divertir nos fins de semana. Quando foi baleada, Antônio, que sempre quis sair do bairro, disse de pronto: "Se a gente tivesse se mudado, nada disso teria acontecido." Segundo o estudo mais recente da Secretaria Municipal de Saúde, realizado em 2006, a região onde Jaci, Antônio e P. moram lidera com folga as estatísticas de homicídio juvenil. Naquele ano, atos de violência tiraram a vida, em média, de 160 jovens a cada 100 mil habitantes nas subprefeituras da Casa Verde/Cachoeirinha e da Freguesia do Ó/Brasilândia - quase o triplo da média da cidade. Os números, ali, se revertem em histórias de vida interrompidas. Muita gente conhece algum caso de assassinato. A Associação de Moradores do Jardim Vista Alegre, a poucas quadras da casa da família, tem um armário de documentos e relatos de violência. O caso da garota, que repercutiu fortemente na comunidade, recebeu o tratamento devido pela polícia. O atirador está preso. A mãe tem medo de encará-lo, cai no choro com facilidade. O pai não se pronuncia sobre o rapaz. A dor da família, retratada pelos olhares cabisbaixos, se torna aguda com a falta de recursos. Antônio está desempregado. Um acidente de trabalho lhe custou a ponta de um dedo e o movimento de outro, que teve o nervo lacerado por uma serra circular. Jaci, por sua vez, não sai de casa, porque é preciso cuidar de P., que tem medo de ficar sozinha. A ajuda, intermitente, vem da vizinhança, que doa cestas básicas e fraldas. "Quando a gente é neném, é normal ser tratado assim. O triste é estar grande e ver minha mãe me dando banho de novo", desabafa P., antes de uma crise de choro. "Nada mais faz sentido", soluça. O desengano pela vida, no entanto, é passageiro. Aos poucos, a voz da garota vai se aveludando. São momentos em que a força da juventude se sobrepõe e um magro sorriso reaparece em seu rosto. É quando P. sonha que voltou a sair ao lado de sua irmã, que ama "mais que tudo".

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