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''Integração do negro é nó até hoje não desatado''

Carlos Vogt: lingüista e professor; estudioso dos quilombos diz que eleição de Obama pode acelerar mudanças, mas destaca que países têm realidades diferentes

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Por Roldão Arruda
Atualização:

A eleição do negro Barack Obama para a Presidência dos Estados Unidos, na terça-feira, indicou o fim de mais uma etapa na luta pelos direitos civis naquele país. No mesmo dia, no Brasil, no interior do Maranhão, famílias remanescentes de um antigo quilombo de escravos receberam a notícia de que o governo atendera a uma antiga reivindicação, entregando-lhes uma área de 74 mil hectares, que será usada de forma coletiva. São duas realidades tão diferentes que é possível perguntar: quantas etapas o Brasil terá de queimar para chegar a algo parecido com Obama? Será possível queimar etapas? Na entrevista abaixo, o lingüista e professor Carlos Vogt, que já estudou a realidade de regiões remanescentes de quilombos no interior de São Paulo, trata dessas questões. Atual secretário de Ensino Superior do Estado, ele já foi reitor da Unicamp e presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp). A impressão que se tem, diante do debate sobre quilombos, é de que se trata de uma questão herdada do século 19, do período pós-abolição, quando se discutia se os negros deveriam receber terras. Não é uma discussão ultrapassada? Não. O Brasil ainda vai ter de enfrentar - entre outras questões sociais - a questão da integração do negro na sociedade: um nó existente, como você lembrou, desde a abolição da escravatura. O problema é que até hoje não foi desatado. Já se fizeram várias tentativas, sobretudo a partir dos anos 20 e 30 do século passado, com o surgimento de uma militância social e cultural intensa; e, mais recentemente, com programas de ações afirmativas, que incluem cotas para negros em universidades públicas. A questão das cotas é polêmica. Vários estudiosos dizem que podem estimular o racismo. Há quem afirme que tratamos a questão no Brasil como se fosse a mesma dos Estados Unidos, ignorando as diferentes realidades. Nos EUA, o grande debate sobre os direitos dos negros ocorreu a partir da segunda metade do século passado. Lá, as políticas afirmativas surgiram no bojo de um debate maior sobre direitos civis, com nomes que até hoje lembramos, como Martin Luther King e John Kennedy. Eu acredito que esse debate e as ações afirmativas foram os maiores responsáveis pelo fato de os EUA já terem tido dois secretários de Estado negros - Colin Powell e Condoleezza Rice - e agora, finalmente, um presidente negro. Isso era inimaginável anos atrás. A eleição de Obama pode influenciar o debate brasileiro? Pode ser uma referência. Pode contribuir para acelerar medidas públicas que acelerem de fato a integração do negro na sociedade. Mas concordo que não podemos copiar nada, porque são culturas muito diferentes. Aqui, vivemos sob o mito da democracia racial - um padrão cultural forte, fixado com a participação de pensadores como Gilberto Freyre. O Brasil tem problemas sociais, como a péssima distribuição de renda, que não envolvem só negros. A concentração de riquezas e a pobreza extrema não atingem, de fato, apenas os negros. Mas eles têm uma participação grande nesse processo. Eu diria que a questão negra é premente, no interior de um processo social amplo, que exige soluções mais abrangentes. Isso não exclui ações afirmativas: elas não são um fim si mesmo, mas uma estratégia destinada a oferecer melhores oportunidades sociais aos negros. E os quilombos? Durante a escravidão, a riqueza de muitos senhores de terras não se media pela extensão da propriedade, mas sim pelo número de escravos que tinham. O valor da terra era pequeno. Com a abolição da escravidão, muitos ex-escravos receberam terras doadas pelos antigos senhores, outros conseguiram comprar. Mas nem todos mantiveram essas posses, com o avanço das propriedades ao seu redor. Para mim, a discussão sobre a posse das terras é legítima e faz parte das ações afirmativas.

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