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Íntegra do discurso de Lula na abertura Assembléia da ONU

Por Agencia Estado
Atualização:

Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura da 59ª Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Senhoras e senhores, Chefes de Estado e de Governo, Senhor Jean Ping, presidente da 59ª Assembléia-Geral da Organização das Nações Unidas, Senhor Kofi Annan, secretário-geral das nações unidas, Senhoras e senhores, Saúdo, na pessoa do chanceler Jean Ping, os representantes de todos os povos aqui reunidos. Cumprimento fraternalmente o secretário-geral Kofi Annan, que tem conduzido as Nações Unidas com sabedoria e abnegação. Senhoras e senhores, Pela segunda vez, dirijo-me a esta assembléia universal para trazer a palavra do Brasil. Carrego um compromisso de vida com os silenciados pela desigualdade, a fome e a desesperança. A eles, nas palavras tremendas de Franz Fanon, o passado colonial destinou uma herança comum: "Se queres, aí a tens: a liberdade para morrer de fome". Hoje somos 191 Estados-nação. No passado, 125 deles foram submetidos ao jugo de umas poucas potências que originalmente ocupavam menos de 2% do globo. O fim do colonialismo afirmou, na esfera política, o direito dos povos à autodeterminação. Esta Assembléia é o signo mais alto de uma ordem fundada na independência das nações. A transformação política, contudo, não se completou no plano econômico e social. E a história demonstra que isso não ocorrerá espontaneamente. Em 1820, a diferença de renda per capita entre o país mais rico e o mais pobre do planeta era inferior a cinco vezes. Hoje, essa diferença é de 80 vezes. Os antigos súditos converteram-se em devedores perpétuos do sistema econômico internacional. Barreiras protecionistas e outros obstáculos ao equilíbrio comercial, agravados pela concentração dos investimentos do conhecimento e da tecnologia, sucederam ao domínio colonial. Poderosa e onipresente, uma engrenagem invisível comanda à distância o novo sistema. Não raro, ela revoga decisões democráticas, desidrata a soberania dos Estados, sobrepõe-se a governos eleitos, e exige a renúncia a legítimos projetos de desenvolvimento nacional. Manteve-se a lógica que drena o mundo da escassez para irrigar o do privilégio. Nas últimas décadas, a globalização assimétrica e excludente aprofundou o legado devastador de miséria e regressão social, que explode na agenda do século XXI. Hoje, em 54 países a renda per capita está mais baixa do que há dez anos. Em 34 países, a expectativa de vida diminuiu. Em 14, mais crianças morrem de fome. Na África, onde o colonialismo resistiu até o crepúsculo do século XX, 200 milhões de seres humanos estão enredados num cotidiano de fome, doença e desamparo, ao qual o mundo se acostuma, anestesiado pela rotina do sofrimento alheio e longínquo. A falta de saneamento básico matou mais crianças na década passada do que todos os conflitos armados desde a II Guerra. Da crueldade não nasce o amor. Da fome e da pobreza jamais nascerá a paz. O ódio e a insensatez que se alastram pelo mundo nutrem-se dessa desesperança, da absoluta falta de horizontes para grande parte dos povos. Apenas neste ano, mais de 1.700 pessoas já morreram vítimas de ataques terroristas ao redor do mundo; em Madri, Bagdá, Jacarta. Tragédias que vêm somar-se a tantas outras, na Índia, no Oriente Médio, nos Estados Unidos, e, recentemente, ao sacrifício bárbaro das crianças de Beslan. A Humanidade está perdendo a luta pela paz. Só os valores do Humanismo, praticados com lucidez e determinação, podem deter a barbárie. A situação exige, dos povos e dos seus líderes, um novo senso de responsabilidade individual e coletiva. Se queremos a paz, devemos construí-la. Se queremos de fato eliminar a violência, é preciso remover suas causas profundas com a mesma tenacidade com que enfrentamos os agentes do ódio. O caminho da paz duradoura passa, necessariamente, por uma nova ordem internacional, que garanta oportunidades reais de progresso econômico e social para todos os países. Exige, por isso mesmo, a reforma do modelo de desenvolvimento global e a existência de instituições internacionais efetivamente democráticas, baseadas no multilateralismo, no reconhecimento dos direitos e aspirações de todos os povos. Mais do que quaisquer estatísticas sobre a desigualdade social, o que deve interpelar nossas consciências é o olhar torturado dos que hoje estão do lado de fora da vida. São olhos que vigiam em nós o futuro da esperança. Não há mais destino isolado, nem conflito que não irradie uma dimensão global. Por mais que nos apontem o céu entre as grades, é preciso não confundir a gaiola de ferro com a liberdade. Temos conhecimento científico e escala produtiva para equacionar os desafios econômicos e sociais do planeta. Hoje, é possível reconciliar natureza e progresso por meio de um desenvolvimento ética e ambientalmente sustentável. A natureza não é um museu de relíquias intocáveis. Mas, definitivamente, ela não pode mais ser degradada pela espoliação humana e ambiental, na busca da riqueza a qualquer custo. Minhas senhoras e meus senhores, Mede-se uma geração não só pelo que fez, mas também pelo que deixou de fazer. Se os recursos disponíveis são fantásticamente superiores às nossas necessidades, como explicar às gerações futuras por que fizemos tão pouco, quando tanto nos era permitido? Uma civilização omissa está condenada a murchar como um corpo sem alma. As exortações do grande artífice do "New Deal", Franklin Roosevelt, ecoam com atualidade inescapável: "O que mais se necessita hoje é de audácia na experimentação. O que mais se deve temer é o próprio medo". Não se trata da audácia do instinto. Mas da coragem política. Sem voluntarismo irresponsável, mas com ousadia e capacidade de reformar. O que distingue civilização de barbárie é a arquitetura política que promove a mudança pacífica e faz avançar a economia e a vida social pelo consenso democrático. Se fracassarmos contra a pobreza e a fome, o que mais poderá nos unir? Minhas senhoras e meus senhores, Creio que é o momento de dizer com toda a clareza que a retomada do desenvolvimento justo e sustentável requer uma mudança importante nos fluxos de financiamento dos organismos multilaterais. Estes organismos foram criados para encontrar soluções, mas, às vezes, por excessiva rigidez, tornam-se parte do problema. Trata-se de ajustar-lhes o foco para o desenvolvimento, resgatando seu objetivo natural. O FMI deve credenciar-se para fornecer o aval e a liquidez necessários a investimentos produtivos, especialmente em infra-estrutura, saneamento e habitação, que permitirão, inclusive, recuperar a capacidade de pagamento das nações mais pobres. Meus senhores e minhas senhoras, A política externa brasileira, em todas as suas frentes, busca somar esforços com outras nações em iniciativas que nos levem a um mundo de justiça e paz. Tivemos, ontem, uma reunião histórica com mais de 60 líderes mundiais, para dar um novo impulso à ação internacional contra a fome e a pobreza. Acredito firmemente que o processo desencadeado ontem elevará o patamar da luta contra a pobreza no mundo. Na medida em que avançarmos nessa nova aliança, teremos melhores condições de cumprir as Metas do Milênio, sobretudo a erradicação da fome. Foi com esse espírito que África do Sul, Índia e Brasil estabeleceram, no ano passado, o fundo de solidariedade IBAS. Nosso primeiro projeto, em Guiné-Bissau, será lançado amanhã. Também priorizamos o tema do HIV-AIDS, que tem perversa relação com a fome e a pobreza. Nosso programa de Cooperação Internacional no combate ao HIV-AIDS já opera em seis países em desenvolvimento e brevemente chegará a mais três. Minhas senhoras e meus senhores, Constato, com preocupação, que persistem graves problemas de segurança, pondo em risco a estabilidade mundial. Não se vislumbra, por exemplo, melhora na situação crítica do Oriente Médio. Neste, como em outros conflitos, a comunidade internacional não pode aceitar que a violência proveniente do Estado, ou de quaisquer grupos, se sobreponha ao diálogo democrático. O povo palestino ainda está longe de alcançar a autodeterminação a que tem direito. Sabemos que as causas da insegurança são complexas. O necessário combate ao terrorismo não pode ser concebido apenas em termos militares. Precisamos desenvolver estratégias que combinem solidariedade e firmeza, mas com estrito respeito ao Direito Internacional. Foi assim que atendemos, o Brasil e outros países da América Latina, à convocação da ONU para contribuir na estabilização do Haiti. Quem defende novos paradigmas nas relações internacionais, não poderia se omitir diante de uma situação concreta. Promover o desenvolvimento com eqüidade é crucial para eliminar as causas da instabilidade secular daquele país. Em nossa região, apesar dos conhecidos problemas econômicos e sociais, predomina uma cultura de paz. Vivemos um período de amadurecimento democrático, com uma vibrante sociedade civil. Estamos aprendendo que o desenvolvimento e a justiça social devem ser buscados com determinação e abertura ao diálogo. Os episódios de instabilidade na região têm sido resolvidos com respeito às instituições. Sempre que chamado, e na medida de nossas possibilidades, o Brasil tem contribuído para a superação de crises que ameaçam a ordem constitucional e a estabilidade de países amigos. Não acreditamos na interferência em assuntos internos de outros países, mas tampouco nos refugiamos na omissão e na indiferença diante de problemas que afetam nossos vizinhos. O Brasil está empenhado na construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, a partir do fortalecimento do Mercosul e de uma relação estratégica com a Argentina. O surgimento de uma verdadeira Comunidade Sul-Americana de Nações já não é um sonho distante graças à ação decidida no que se refere à integração física, econômica, comercial, social e cultural. O Brasil tem atuado nas negociações comerciais multilaterais para alcançar acordos justos e eqüitativos. Na última reunião da Organização Mundial do Comércio, deu-se um grande passo para a eliminação de restrições abusivas que prejudicam os países em desenvolvimento. A articulação de países da África, América Latina e Ásia no G-20 foi decisiva para manter a rodada de Doha na trilha da liberalização do comércio com justiça social. O sucesso de Doha representa a possibilidade de livrar da pobreza mais de 500 milhões de pessoas. É fundamental continuar desenhando uma nova geografia econômica e comercial, que, preservando as vitais relações com os países desenvolvidos, crie sólidas pontes entre os países do Sul, que por muito tempo permanecem isolados uns dos outros. Senhoras e senhores, O Brasil está comprometido com o êxito do Regime Internacional sobre Mudança do Clima. Estamos engajados no desenvolvimento de energias renováveis. Por isso, seguiremos trabalhando ativamente pela entrada em vigor do Protocolo de Quioto. A América do Sul responde por cerca de 50% da biodiversidade mundial. Defendemos o combate à biopirataria e à negociação de um regime internacional de repartição dos benefícios resultantes do acesso a recursos genéticos e conhecimentos tradicionais. Senhoras e senhores, Reitero o que disse no ano passado desta Tribuna: uma ordem internacional fundada no multilateralismo é a única capaz de promover a paz e o desenvolvimento sustentável das nações. Ela deve assentar-se sobre o diálogo construtivo entre diferentes culturas e visões de mundo. Nenhum organismo pode substituir as Nações Unidas na missão de assegurar ao mundo convergência em torno de objetivos comuns. Só o Conselho de Segurança pode conferir legitimidade às ações no campo da paz e da segurança internacionais. Mas sua composição deve adequar-se à realidade de hoje, e não perpetuar aquela do pós Segunda Guerra ou da Guerra Fria. Qualquer reforma que se limite a uma nova roupagem para a atual estrutura, sem aumentar o número de membros permanentes é, com certeza, insuficiente. As dificuldades inerentes a todo processo de reforma não devem fazer com que percamos de vista a urgência das mudanças. Senhoras e senhores, Não haverá segurança nem estabilidade no mundo enquanto não construirmos uma ordem mais justa e mais democrática. A comunidade das nações precisa dar resposta clara e inequívoca a esse desafio. Haveremos de encontrá-la nas sábias palavras do profeta Isaías: "A paz só virá como fruto da Justiça." Muito obrigado Nova York, 21 de setembro de 2004

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