Inquérito mostra que Ciro Nogueira tratava chefe do Cade de ‘meu menino’

Ministro da Casa Civil se referiu ao atual presidente do órgão, Alexandre Cordeiro, como apadrinhado em gravação de 2017 feita pelo empresário Joesley Batista: ‘Botei ele lá’

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Por Vinícius Valfré , Lorenna Rodrigues (Broadcast), Guilherme Pimenta e Julia Affonso
Atualização:

BRASÍLIA — O inquérito da Polícia Federal que apontou indícios da prática dos crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro pelo ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, mostra num trecho de suas 217 páginas que ele trata um apadrinhado em posto-chave do governo como seu despachante pessoal. Em uma conversa, o ministro se refere ao presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), Alexandre Cordeiro, como “meu menino” e diz ainda “eu botei ele lá”.

Em troca de apoio do Progressistas, sigla que controla, o ministro conseguiu fazer de Cordeiro o mais longevo a ocupar o alto escalão do Cade. E, ao se aproximar do presidente Jair Bolsonaro, colocou “seu menino” no posto mais alto. O Cade é um dos órgãos mais temidos pelos empresários. É lá que são investigadas as acusações de prática de cartel e são decididas fusões de empresas que envolvem bilhões. 

Ciro Nogueira (à dir.) com o então conselheiro do Cade Alexandre Cordeiro (centro), em 2015; 'Botei ele lá', disse o ministro, em diálogo. Foto: Facebook/Ciro Nogueira

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A conversa em que Ciro Nogueira fala sobre sua influência no Cade foi gravada pelo empresário Joesley Batista, do grupo J&F, no dia 17 de março de 2017, quando ele buscava provas para sua delação premiada. E só agora veio à tona. Hoje, cinco anos depois, Ciro Nogueira se tornou o ministro mais poderoso do governo Bolsonaro e Alexandre Cordeiro, presidente do Cade.

Naquela conversa, Joesley se queixou de problemas no Cade. Em resposta, Ciro Nogueira disse ter um apadrinhado lá dentro. “Um cara de bom senso. Meu menino, ele era meu chefe de gabinete, eu botei ele lá (...) E ele conseguiu se entrosar lá”, afirmou. Joesley perguntou: “Como é que é. Alexandre o quê?” “Cordeiro”, responde o ministro. 

Na época, a J&F fechou um frigorífico em Santa Fé do Sul (SP) e demitiu 600 funcionários alegando não conseguir cumprir determinação do Cade que impunha níveis mínimos de produção na planta. Em março, o frigorífico foi reaberto com autorização do órgão para produção menor.

Durante a conversa com Joesley, o ministro reforçou a preocupação em manter o controle do Cade. “É uma coisa que nós temos que, porque hoje nós temos a maioria lá, por isso que ele conseguiu (incompreensível)”, disse o ministro, conforme a PF. “Nós não podemos perder a maioria.”

Questionado sobre qual a razão para um político ter o controle de um órgão técnico como o Cade e a forma de tratamento do seu apadrinhado, Ciro Nogueira não respondeu. Cordeiro também silenciou. 

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O inquérito, concluído na semana passada, afirma que Ciro Nogueira recebeu R$ 5 milhões de propina da J&F em troca de apoio à reeleição de Dilma Rousseff (PT) em 2014, que interessava a Joesley. Na época, o PP (atual Progressistas) cumpriu o acordo. Em troca, Ciro Nogueira emplacou “seu menino” para conselheiro do Cade pela primeira vez. Nesse inquérito específico, a PF não aprofunda a investigação sobre a atuação no órgão.

No governo Michel Temer (MDB), em 2017, Ciro Nogueira colocou Cordeiro como superintendente-geral do órgão, cargo responsável pelas investigações de infrações econômicas como cartel. Na época, Temer chegou a indicar uma técnica para a vaga, mas cedeu a pressões e trocou a servidora por Cordeiro. 

Em 2019, o ministro conseguiu convencer o presidente Jair Bolsonaro a reconduzir “seu menino” para o cargo na superintendência. Em 2021, ao aderir ao Centrão, Bolsonaro colocou Cordeiro como presidente do Cade até 2025. No cargo, o apadrinhado de Ciro Nogueira tem poder sobre processos de multinacionais e é um importante elo entre o ministro e o Poder Judiciário.

Um exemplo da influência de Cordeiro sobre transações bilionárias de empresas foi o julgamento da venda da Oi para Vivo, Tim e Claro, em fevereiro. O Ministério Público Federal (MPF) e o relator do caso se manifestaram contrários à transação por constatarem ameaças à competitividade no mercado de telefonia. O julgamento ficou empatado em três a três. Por ser presidente do colegiado, Cordeiro tinha o “voto de qualidade”, o que determinou o resultado favorável à venda da telefônica.

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Nos bastidores, integrantes do órgão criticaram a atuação de Cordeiro no caso. Em sessão pública, houve trocas de acusações entre conselheiros e um deles chegou a dizer que a aprovação do negócio não observou padrões “éticos e de boa-fé”. O processo foi um dos mais complexos e relevantes da história do Cade. A negociação envolveu o pagamento de R$ 16,5 bilhões. 

Antes de ser presidente, Cordeiro era superintendente-geral do Cade, responsável por investigar infrações como cartel. Em sua passagem pelo cargo, foi responsável por negociações de acordos da Lava Jato em diversos processos.

Em 2018, Cordeiro tomou uma decisão na superintendência que surpreendeu servidores e integrantes do órgão. À época, o Cade analisava a compra da Transfederal, do ex-presidente do Senado Eunício Oliveira (MDB-CE), pela espanhola Prosegur. 

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Os técnicos do Cade recomendaram a reprovação da operação, mas, em rara decisão, Cordeiro divergiu dos subordinados e aprovou o negócio no âmbito da área técnica. Durante sua gestão, ao menos seis servidores experientes deixaram o setor técnico do Cade com críticas a sua conduta.

As indicações do ministro têm sido foco de desgaste para Bolsonaro. Uma das áreas mais críticas é o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Estadão revelou que a autarquia presidida por Marcelo Ponte tentou comprar por leilão ônibus escolares por valores inflados. 

O trampolim para Cordeiro chegar ao Cade e Marcelo Ponte, ao FNDE, foi a chefia de gabinete de Ciro Nogueira no Senado. O mesmo posto hoje no Ministério da Casa Civil é ocupado por Sabá Cordeiro, irmã do presidente do Cade.

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