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Guimarães Rosa assessorou generais em conflito com Paraguai

Documento revela que, em 1966, escritor discutiu problema de fronteira com Castello Branco, Geisel e Costa e Silva

Por Marcelo de Moraes e BRASÍLIA
Atualização:

Documentos inéditos da ditadura revelam os bastidores do dia em que João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos, foi um dos protagonistas de uma reunião do Conselho de Segurança Nacional. Em 11 de março de 1966, o conselho reuniu os principais integrantes do governo militar, incluindo o presidente Humberto Castello Branco e seus futuros sucessores, os generais Arthur da Costa e Silva (então ministro da Guerra) e Ernesto Geisel (secretário-geral do conselho), para discutir questões de fronteira entre o Brasil e o Paraguai. No meio de generais, como o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Golbery do Couto e Silva, e de ministros pesos-pesados, como Octávio Gouvêia de Bulhões (Fazenda) e Roberto Campos (Planejamento e Coordenação Econômica), entre outros, o autor de Grande Sertão: Veredas era figura importante para a discussão. Afinal, paralelamente à construção dos mundos de Riobaldo, Diadorim e Augusto Matraga, entre muitos de seus personagens antológicos, Guimarães mantinha respeitável carreira diplomática e respondia pela chefia da Divisão de Fronteiras do Itamaraty. Sabia de cor cada detalhe das questões de limites entre o Brasil e seus vizinhos. No caso do Paraguai, não era diferente. Segundo os registros da ata da 36ª sessão do Conselho de Segurança Nacional, guardada no Arquivo Nacional, em Brasília, à qual o Estado teve acesso, o governo reuniu seus principais integrantes nessa reunião para deliberar sobre o tom de uma nota que divulgaria para tentar conter os pleitos paraguaios em relação a parte do território brasileiro. A principal divergência dizia respeito à reivindicação feita pelo Paraguai de áreas no Salto de Sete Quedas, a maior cachoeira do Rio Paraná, onde o Brasil havia iniciado anos antes levantamentos para um grande aproveitamento hidrelétrico. Mais tarde, esse processo acabaria levando à construção da usina de Itaipu, justamente em parceria com o Paraguai. Em 1966, porém, esse acordo ainda era impensável. O clima era de discordância total com o vizinho. Na reunião do conselho, Castello Branco queria ouvir a opinião de todo o governo, principalmente a área técnica do Ministério de Relações Exteriores, para definir os termos de uma nota que rechaçasse as pretensões paraguaias. "DESARRAZOADO COMPLETO" Em sua intervenção, Guimarães fornece amplos detalhes técnicos sobre o caso. De quebra, relata a sua clara descrença na possibilidade de concretização de um acordo razoável com o governo paraguaio. Na época, o país era governado pelo ditador Alfredo Stroessner. "Até o último momento há esperança de podermos convencê-los de alguma coisa. Mas não parece - já nos pareceu - que há possibilidade de entendimentos. Porque não só a opinião do governo paraguaio, dos diplomatas paraguaios quando conversam conosco, como da imprensa paraguaia, mostram um desarrazoado completo. A tal ponto que os jornais publicam documentos, deturpando-os sistematicamente", afirma. A argumentação se segue: "A massa de informações que temos, não só de telegramas do embaixador, como dos jornais, mostram algo impressionantemente estranho. Coisa que raia pela esquizofrenia. Onde não há possibilidade de aceitar, porque o que aconteceu, senhor presidente e senhores ministros, é que jamais o Paraguai quis aceitar a representação consciente do que tinha acontecido com ele. Jamais", diz, possivelmente referindo-se aos efeitos da Guerra do Paraguai. Com sua experiência diplomática, Guimarães desdenha da idéia sugerida na reunião, de se trocar a divulgação da nota pela publicação de uma espécie de "livro branco", com todos os documentos históricos sobre os tratados que definiram as fronteiras entre os países. "Tive oportunidade de verificar, por exemplo, em importante conferência de paz, em Paris, em 1946, livros primorosos, encadernados, ilustrados com belos mapas, jogados nos cestos." Guimarães, então, defende a divulgação da nota, "pensando na necessidade de esclarecermos ou de respondermos ao Paraguai para que colocassem um pouco de bom senso, um pouco de lógica dentro do encaminhamento da argumentação", afirma. "A nota deles é realmente impressionante. E, às vezes, a maior dificuldade nossa era retomar o equilíbrio psicológico depois de encontrar coisas tão desastradas, falseadas e declaradas sem pejo", diz ele. USINA Apesar da pressão paraguaia, o Brasil conseguiu administrar o assunto, especialmente depois que acertou com o governo vizinho a construção da Usina de Itaipu. A obra, de caráter binacional, foi construída na região questionada do Salto de Sete Quedas, com o Brasil comprando do Paraguai todo o excedente de energia que o vizinho jamais foi capaz de consumir. Agora, com a eleição de Fernando Lugo como presidente paraguaio voltam à cena as velhas questões de rediscussão das fronteiras e até mesmo o pedido de renegociação dos termos do Tratado de Itaipu, de 1973. Desta vez, porém, o governo terá de se virar para resolver o problema sem a ajuda de Guimarães, morto em 1967. PARTICIPANTES DA REUNIÃO DE 11 DE MARÇO DE 1966 1. Marechal Humberto Castello Branco (presidente da República) 2. Almirante Zilmar Araripe Macedo (ministro da Marinha) 3. General Arthur da Costa e Silva (ministro da Guerra) 4. Embaixador Juracy Magalhães (ministro das Relações Exteriores) 5. Octavio Gouvêia de Bulhões (ministro da Fazenda) 6. Marechal Juarez Távora (ministro da Viação e Obras Públicas) 7. Ney Braga (ministro da Agricultura) 8. Pedro Aleixo (ministro da Educação e Cultura) 9. Walter Peracchi Barcellos (ministro do Trabalho e Previdência) 10. Marechal do Ar Eduardo Gomes (ministro da Aeronáutica) 11. Raimundo de Moura Brito (ministro da Saúde) 12. Paulo Egydio Martins (ministro da Indústria e Comércio) 13. Mauro Thibau (ministro das Minas e Energia) 14. Roberto Campos (ministro do Planejamento e Coordenação Econômica) 15. Luiz Vianna Filho (ministro do Gabinete Civil) 16. Tenente-brigadeiro Nelson Freire Lavanère Wanderley (chefe do Estado Maior das Forças Armadas) 17. General Décio Palmeiro de Escobar (chefe do Estado Maior do Exército) 18. Tenente-brigadeiro Clóvis Monteiro Travassos (chefe do Estado Maior da Aeronáutica) 19. Almirante Arnoldo Toscano (chefe do Estado Maior da Armada) 20. General Golbery do Couto e Silva (chefe do Serviço Nacional de Informações) 21. Haroldo Teixeira Valadão (ministério de Relações Exteriores) 22. João Guimarães Rosa (ministério de Relações Exteriores) 23. Coronel Octávio Tosta da Silva (ministério de Relações Exteriores) 24. General Ernesto Geisel (secretário geral do Conselho de Segurança Nacional)

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