Governo propõe criação de Comissão da Verdade sobre regime militar

Se aprovada pelo Congresso, comissão deve apurar casos de violação de direitos humanos.

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Por Fabrícia Peixoto
Atualização:

O governo brasileiro dá início, nesta segunda-feira, a um processo que pode levar à criação de uma Comissão Nacional da Verdade no país, com o objetivo de apurar casos de violação de direitos humanos durante o regime militar, incluindo o levantamento de possíveis responsáveis. A formação de um grupo de trabalho que vai redigir um projeto de lei sobre a comissão faz parte do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, que será assinado nesta segunda-feira, em Brasília, pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Se aprovada pelo Congresso, a Comissão da Verdade deverá divulgar relatórios anuais com a "apuração e o esclarecimento público das violações de direitos humanos" praticadas durante o regime militar (1964-1985). O secretário nacional de Direitos Humanos, ministro Paulo de Tarso Vanucchi, disse à BBC Brasil que "centenas de pessoas" deverão ser ouvidas, incluindo vítimas e possíveis agressores. "O trabalho da Comissão é ouvir vítimas e sintetizar seus depoimentos, vinculando datas, locais, tipos de violência e responsáveis", disse o ministro. Segundo ele, os relatórios vão ainda propor políticas públicas que "impeçam a repetição desses fatos". O ministro disse ainda que "pessoalmente" não considera "ideal" a proposta do governo, mas que ela é o resultado natural de um "processo democrático" de discussões com outros ministérios. Oposição Durante as discussões sobre a criação da Comissão, o governo enfrentou a oposição principalmente do Ministério da Defesa, contrário à punição dos torturadores. "Não é a proposta que eu proporia, assim como também não é a proposta que o ministro Nelson Jobim (Defesa) proporia. Mas temos de acreditar nisso, na capacidade de cada um ceder um pouco", disse Vanucchi. Os defensores da criação da Comissão da Verdade afirmam que é um direito das famílias de pessoas torturadas e mortas durante o regime militar, muitas das quais nunca conseguiram localizar os corpos dos parentes desaparecidos. No entanto, alguns setores da sociedade, sobretudo ligados aos militares, têm resistência quanto à instalação de uma Comissão da Verdade, por temerem que a inciativa se transforme em um instrumento de "revanchismo histórico". O ministro Jobim já falou em entrevistas sobre o risco de revanchismo e a criação de atritos desnecessários com as Forças Armadas. "Uma coisa é o direito à memória, outra é revanchismo e, para o revanchismo, não contem comigo", disse Jobim em uma entrevista à Agência Brasil em junho. Lei da Anistia Apesar de ter como objetivo uma investigação "rigorosa" dos fatos, de acordo com Vanucchi a Comissão da Verdade não terá poderes para punir responsáveis, mas poderá "subsidiar" a Justiça no futuro. Ele lembra que é preciso aguardar a revisão da Lei da Anistia (1979) pelo Supremo Tribunal Federal. "Caso o STF entenda que os torturadores não podem ser anistiados, aí sim teremos um ordenamento jurídico no país para a punição dessas pessoas", diz. Segundo ele, mesmo que o STF decida o contrário - ou seja, que a anistia deve ser estendida aos responsáveis pelos crimes -, "ainda assim a existência da Comissão faz todo o sentido". "A ideia é que a sociedade saiba exatamente o que aconteceu no nosso passado. A Alemanha viveu, no nazismo, um sentimento infinitamente mais doloroso e as pessoas não deixam de discutir o assunto, inclusive nas escolas", diz Vanucchi. Muitos dos defensores da criação da Comissão da Verdade alegam que os responsáveis por mortes e atos de tortura durante o regime militar ainda podem ser punidos e afirmam que, conforme acordos internacionais assinados pelo Brasil, crimes e violação dos direitos humanos não prescrevem. No entanto, setores contrários à instalação da comissão argumentam que a Lei da Anistia teve o objetivo de reconciliar o país, abrangendo tanto perseguidos políticos quanto acusados de atos de tortura. Em entrevistas anteriores, o ministro da Defesa já afirmou que considera essa interpretação sobre a prescrição dos crimes um equívoco. "Dizem que os tratados internacionais consideram alguns crimes imprescritíveis. Mas, no Brasil, não é assim. Os tratados internacionais aqui não valem mais que a Constituição. Eles estão sujeitos à Constituição brasileira, que dá imprescritibilidade para um crime só: o de racismo. Trata-se de uma questão legal", disse Jobim em entrevista à Agência Brasil. Desconfiança Apesar de ser uma antiga demanda das famílias das vítimas do regime militar, a Comissão da Verdade nos moldes propostos pelo governo Lula é vista com desconfiança por algumas entidades de defesa dos direitos humanos, como o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e o grupo Tortura Nunca Mais. A representante no Brasil do Cejil, Beatriz Affonso, diz que uma Comissão da Verdade, em qualquer país, só tem um papel efetivo quando atende a determinados princípios. "É preciso haver garantias, por exemplo, de que as audiências da Comissão serão públicas e de que a Comissão terá poderes para fazer buscas em arquivos", diz. Ela lembra que os principais trabalhos de investigação sobre crimes cometidos durante o regime militar no país foram feitos com base em relatos e documentos levantados pelas próprias famílias. "Só daremos um passo definitivo nesse processo quando o governo colocar seus próprios documentos à disposição. E isso deve ser feito pela Comissão da Verdade", diz Beatriz. Segundo ela, o governo tem tido uma postura "contraditória" ao lidar com o tema de direitos humanos, principalmente no que diz respeito ao regime militar. "O mesmo governo que propõe a Comissão da Verdade também pede à Corte da OEA o arquivamento da ação sobre a Guerrilha do Araguaia", diz Beatriz. "O Brasil reconhece a responsabilidade internamente, mas não o faz na arena internacional", acrescenta. BBC Brasil - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito da BBC.

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