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Governo da Argentina adota indiferença estratégica em troca nas Forças Armadas brasileiras

Gestão de Alberto Fernández mantém silêncio entende que o kirchnerismo não teve com outros parceiros regionais, e trata tema como 'assunto interno'

Por Daniel Galvalizi
Atualização:

BUENOS AIRES – Quando o Brasil tem uma gripe, a Argentina fica resfriada. É um antigo provérbio do mundo diplomático do país vizinho, consciente da relevância de seu principal parceiro comercial e geopolítico. Habituada a crises cíclicas e recorrentes, a liderança política argentina não se surpreende com a instabilidade, mas está consciente de que as repercussões econômicas do que ocorre mais além do rio Uruguai sempre se fazem sentir.

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O que as Forças Armadas representam para os argentinos é bem diferente de outros países. Muito desprestigiados durante a última ditadura, ligados ao roubo de bebês e de bens materiais, além da derrota nas Malvinas, os militares são tudo menos um fator de poder e de consulta. Para a sociedade argentina seria difícil digerir uma tentativa de politização das forças militares. 

Mas houve um precedente no segundo mandato de Cristina Kirchner que lhe custou caro. Pela primeira vez em quase três décadas (desde o indulto aprovado pelo ex-presidente Menem para os militares da ditadura), um chefe de Estado tentou politizar as Forças Armadas da Argentina, com o ex-comandante do Exército, César Milani. O resultado foi uma torrente de críticas que acabaram forçando a renúncia dele. 

O senador Julio Cobos, ex-vice-presidente da Argentina, alertou para perigos da militarização civil Foto: REUTERS/Rickey Rogers (10/12/2007)

Neste contexto é que devemos entender a reação (ou ausência dela) da Casa Rosada diante dos acontecimentos envolvendo o governo Bolsonaro. Alguns setores diplomáticos mostraram surpresa com a falta de declarações a respeito, embora associem isso à inexistência de uma afinidade ideológica com o Planalto do Brasil e à intenção de não perturbar o vínculo.

Segundo uma fonte do ministério das Relações Exteriores, o chanceler argentino Felipe Solá não considera a situação preocupante. Em uma reunião com o ministro, em que foi abordada a situação no Brasil, segundo a fonte, a resposta de Solá foi de que “não” existe alarme e ele vê a questão como algo interno, mais além das reações da mídia”.

“Não acredito que se animem a muito mais do que o fato”, teria dito Solá referindo-se às posições dos militares e de Bolsonaro. Mas a passividade do governo kirchnerista vai na contracorrente de outras atitudes que teve com relação a aliados estratégicos, como em 2008 face ao do confronto entre as forças de segurança e Evo Morales ou em 2010 com Rafael Correa.

Um embaixador argentino em um país latino-americano falou da sua surpresa: “Sim, acho que deveriam estar mais preocupados na Casa Rosada porque a situação no Brasil é preocupante. Mas as autoridades diplomáticas não estão à altura das circunstâncias”. Esta representa uma opinião comum no âmbito dos setores diplomáticos intermediários e da autoridade de fato do Palácio San Martín, sede do Ministério das Relações Exteriores argentino.

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No ministério do Interior, que costuma ser a caixa de ressonância do pensamento político presidencial – uma fonte disse que “não existe preocupação e nem é uma fonte de debate”, afirmando que a inquietação maior no tocante ao Brasil no momento “não é sua situação democrática, mas sanitária, e que não chegue à Argentina a variante de Manaus. A prioridade maior é a vigilância das fronteiras”.

Fora do peronismo, a opinião é outra, como também a preocupação é diferente. O antigo vice-presidente e o número dois da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Julio Cobos, conversou com o Estadão e lamentou que a "república brasileira irmã esteja passando por momentos complicados”.

“A militarização do poder civil implica uma série de perigos que nossa região conhece muito bem, e neste contexto é muito importante evitar a politização dos quartéis, já que os governos acabam, mas as Forças Armadas seguem presentes nas vidas dos países”. “A estabilidade política e a força institucional são pilares importantes, confiamos que o nosso país irmão conte com os mecanismos democráticos necessários para enfrentar qualquer tipo de inconveniente”, afirmou Cobos, senador pelo partido de oposição União Cívica Radical.

“O governo argentino não vai chorar pelos problemas de Bolsonaro por uma questão ideológica. O temor que existe é com a instabilidade mais do que a ruptura da ordem constitucional, que preocupa de maneira genérica, mas não é algo prioritário. Existe uma decisão estratégica de não fazer transcender a apreensão para não prejudicar o vínculo bilateral. O plano é não opinar e afirmar que são assuntos internos, salvo a situação de Lula”, disse o pesquisador e professor da Universidade de Buenos Aires, Patricio Gómez Talavera, especialista em assuntos brasileiros.

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Segundo o professor, haverá “reações mais fortes se uma ruptura da democracia se consumar”, mas no momento a relação entre os dois países é mais fluída “nas redes informais há vasos comunicantes no funcionalismo intermediário que substituem a diplomacia presidencial que havia entre Cristina Kirchner e Dilma”. Atualmente a pouca afinidade entre Fernández e Bolsonaro resultou num “um efeito colateral de relações entre elites, por exemplo, os militares mantêm uma relação fluída, ou ainda o vínculo criado entre os presidentes da Câmara dos Deputados Sergio Massa e Rodrigo Maia”.

Nesse sentido, ele destacou uma ligação pouco conhecida: o embaixador argentino em Brasília, Daniel Scioli, mantém uma relação próxima com Eduardo Bolsonaro; os dois almoçam juntos às vezes e procuram melhorar a relação bilateral mais além dos presidentes. E de fato, fontes do kirchnerismo confirmaram que, graças a essa “criação de pontes informais”, Scioli conseguiu dissipar problemas nos mercados de uvas, laticínios e carne.

No momento, a Casa Rosada, no meio de uma crise econômica brutal, vê com fria distância e de modo calibrado a situação do seu aliado mais próximo. Mas, se as consequências afetarem a economia, essa indiferença pode mudar. / TRADUÇÃO DE TEREZA MARTINO

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