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General diz que Centrão tem ‘salvo-conduto para roubar’ no governo Bolsonaro

Com Mourão fora da chapa para 2022, Bolsonaro se livra do último ‘Cavalheiro da República’; grupo de generais que se reunia no 1.º Regimento de Cavalaria de Guardas é defenestrado pelo presidente e sobe o tom contra governo

Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,  O grupo de militares que se descolou do bolsonarismo e procura uma terceira via para manter sua influência na Esplanada ganhou um companheiro: o vice-presidente Hamilton Mourão. É o que mostra texto do coronel Paulo Rocha Paiva, distribuído entre militares na semana passada. A exemplo do que fizera o ex-juiz Sergio Moro em 2020, o coronel  pôs o vice como candidato em 2022. Contra Bolsonaro. Em entrevista ao Estadão, Mourão deixou claro que tem uma visão de mundo diferente de Jair Bolsonaro e que foi isolado, não participa das reuniões de governo. Bolsonaro chama o governo de seu, assim como o Exército, seus ministros, sua caneta e suas verdades. Até a democracia. Tudo é seu. Menos os erros.

Hamilton Mourão, que monta cavalos desde criança, segura a rédea do Ídolo do Rincão; segundo ele, durante o treino, política é assunto proibido Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Por isso, desde 2019, Mourão começou a ser rifado por Bolsonaro. Naquele tempo, o presidente estava no hospital, e o vice aparecia, dava entrevistas e recebia elogios. Alimentava em Carlos Bolsonaro a impressão de que conspirava contra seu pai, em companhia de outros generais do Planalto. O vereador se ressentia ainda do secretário de Governo. Era então o general Santos Cruz, logo envolvido em trama típica do bolsonarismo, que misturou a falsificação de provas a um peculiar tipo de extremismo: o general controlava verbas, dinheiro público cobiçado em Brasília. 

Bolsonaro faz o papel do capitão que não se sujeita aos generais. Estes pensavam lidar com um político peculiar, como o designara o general Edson Leal Pujol em 2018. A turma montava seus cavalos todas as manhãs no 1.º Regimento de Cavalaria de Guardas, a 20 quilômetros do Palácio do Planalto. Reunia-se em uma espécie de confraria, logo apelidada por Mourão de “Cavaleiros da República”. Bolsonaro não os perdoou. Rifou um a um os membros do grupo. 

Primeiro foi Santos Cruz, defenestrado em 2019. Depois, Mourão, que teve a vaga de vice na chapa em 2022 retirada pelo general Luiz Eduardo Ramos, pouco depois de este ocupar o lugar de Santos Cruz.  Ramos pensava então no ex-juiz Moro. “Uma chapa imbatível”, ele disse. Depois, diante da necessidade de cuidar de Flávio Bolsonaro, o filho rico do presidente, e de fazer acordos com o Centrão, o capitão começou a buscar o nome de alguém mais adequado ao atual momento do governo.

O então comandante do Exército, general Édson Pujol, também participava dos treinos Foto: Dida Sampaio/Estadão

O próximo da confraria a ser demitido foi Pujol, que aprendeu que o pitoresco político não suportaria jamais a ideia de que alguém poderia ter autonomia no governo. Bolsonaro, em seu linguajar, sempre afirmou que não seria "um bundão", que é o dono da bola no governo, no caso, a caneta. Leal Pujol devia saber que não importava se antigos camaradas de caserna criticavam em Bolsonaro o temperamento e a falta de comprometimento com o trabalho. No final, Bolsonaro ia se impor. 

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Outros generais se desiludiram com o capitão, também integrantes da confraria: Paulo Chagas e Rêgo Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro. Ao exército dos desiludidos se juntariam o general Francisco Mamede de Brito Filho e o coronel Paulo Rocha Paiva. Chagas escreveu no Twitter: "'Se gritar pega Centrão, não fica um...!' Independente de qualquer outra opinião, eu continuo acreditando nesta afirmação. O Centrão, hoje no controle geral da gestão pública, está a aprovar o salvo-conduto para roubar. Parabéns! Nem no governo de Lula, o Ali Babá, eles foram tão longe!"

Foi assim que Bolsonaro reuniu contra si um grupo de generais que fez campanha pelo capitão. Eles abriram-lhe as portas dos quartéis e diminuíram as resistências existentes contra o presidente na caserna entre os que carregavam ainda na memória a conclusão do ministro Leônidas Pires Gonçalves sobre Bolsonaro. Leônidas dizia que a desonra nunca podia estar do lado do Exército. A mendacidade do capitão, constatada em Conselho de Justificação, foi esquecida, perdoada, como seria mais tarde  perdoado o general da ativa Eduardo Pazuello, que frequentou o palanque do presidente. 

Era mais importante tirar o PT do poder. Mas, para isso, a moralidade pública e 500 mil vidas teriam de perecer? Ou bilhões do orçamento secreto teriam de ser entregues ao Centrão? Devia-se condescender com o extremismo que treinava para atacar o Supremo Tribunal Federal? Ou com a cloroquina e o descrédito à ciência e ao magistério? E com o deboche de um presidente que faz troça com a doença para seus apoiadores diante dos brasileiros enfermos e de suas famílias enlutadas? Afinal, qual era o limite? 

O governo agora quer vincular seu nome a uma medida dos estados de exceção. Parecer da Advocacia Geral da União de Bolsonaro enviado ao Supremo defende o julgamento de jornalistas com base na Lei de Segurança Nacional pelo Superior Tribunal Militar (STM). Voltaremos à época da ditadura, na qual profissionais de imprensa podiam ser presos quando desagradavam a algum general com suas reportagens? É verdade que existem militares que nunca se deixaram levar pelo conto do capitão, como os coronéis Péricles da Cunha e Marcelo Pimentel. Mas, afinal, quem está esticando a corda?

A língua italiana tem um verbo que explica o erro dos que apostaram em um Bolsonaro sob controle, domesticado: sdoganare, passar pela alfândega. Usa-se o termo para se referir à atitude de quem pretende legitimar ou aceitar ideias extremistas, como se o que antes causava escândalo fosse agora aceitável. Generais ajudaram a passar Bolsonaro pela alfândega da respeitabilidade da República, mas o presidente, como afirmou o cientista político Francisco Weffort, "não respeita as regras de um sistema democrático"

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O então deputado federal Jair Bolsonaro em seu gabinete na Câmara dos Deputados, em 2017 Foto: Igo Estrela / Estadão

Ao esticar a corda das instituições e da democracia, o bolsonarismo fez surgir em público fantasmas que se pensavam esconjurados pela Nova República. A conversa sobre o golpe não foi esticada pelos que se opõem a Bolsonaro, mas por militares como o coronel Gelio Fregapani, pelo presidente e seus filhos e por parlamentares bolsonaristas. Quem fala em passar a régua na democracia e na oposição são oficiais em grupos de zap e em artigos nas redes sociais. Fregapani é só mais um dos entusiastas de Bolsonaro. 

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Pode-se dizer dos pregoeiros de golpes e assassinatos: "Eles não representam as Forças Armadas" ou que o "Exército não declarou a República para pôr no poder, no lugar do imperador, outro irresponsável". O juiz Vladimiro Zagrebelsky, ex-integrante da Corte Europeia de Direitos Humanos, escreveu ao jornal La Stampa um artigo para explicar por que "sdoganare" o fascismo é um erro. "Dar de ombros às palavras (dos radicais) só fará os eleitores de uma direita nostálgica sentirem-se legitimados na arena política." 

O magistrado reafirmou a raiz antifascista da Constituição da Itália e criticou os neofascistas que se escondem atrás de uma bandeira com a qual não têm nada a ver. "Traços de fascismo emergem em vasta parte do mundo político e da opinião pública, ainda que não mais se use o cassetete e a camisa preta." Eles estão na ideologia e no ódio às diferenças, no ataque ao Congresso, na exaltação de uma impossível democracia direita e na linguagem bélica no debate político, sem freio ou respeito pelos adversários. Eis o clima e os motivos de alarme que não consentem achar o presidente apenas "pitoresco". Mourão, Santos Cruz e os que dissentem do governo têm o desafio de afirmar que a democracia – assim como o Exército – não permite ser tratada com pronomes possessivos.