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General de Bolsonaro usa ‘tabela do WhatsApp’ para contestar gravidade da covid-19 no País

Militares concluíram o processo de transformação em políticos depois que assumiram a defesa do bolsonarismo no Planalto

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Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor,

Quando numa certa manhã, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto acordaram de sonhos intranquilos, encontraram-se metamorfoseados em políticos. Os generais não tinham o uniforme correto, o sapato engraxado, as mãos estendidas e abertas com o polegar enérgico alinhado milimetricamente com os demais dedos a prestar a mais perfeita continência. Tentaram voltar a dormir, pois a profissão de ministro de Jair Bolsonaro cansa, vive-se aos sobressaltos, como o dentista de Stalin...

O presidente Jair Bolsonaro aparece na rampa do Palácio do Planalto durante manifestação a favor do governo neste domingo, 17 Foto: GABRIELA BILO/ ESTADÃO

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A metamorfose dos generais em políticos foi o que o leitor viu quando os dois lideraram a última, mas não a definitiva, exibição de irracionalidade no Planalto. Era sexta-feira, dia 15. Braga Netto sacou para os jornalistas um gráfico sobre a covid-19 no mundo. Se a turma frequentasse os mesmos grupos de WhatsApp de quem levou o documento ao general, veria que Braga Netto estava usando um argumento antigo e difundido pelas milícias bolsonaristas. O truque que o convenceu era usar o cálculo de mortes por cem mil habitantes e comparar os dados do Brasil com países com um índice pior, como a Bélgica.

O objetivo dos bolsonaristas ao espalhar a tabela para as tias Helenas do Zap é confundir. Seria possível fazer o mesmo gráfico com outros países, como China, Rússia, Índia, Indonésia, Paquistão e Argentina e, assim, colocar o Brasil em primeiro lugar no ranking de mortes por habitantes. Não se fala em subnotificação nem de testes para saber nossa real situação. Espera-se que Braga Netto, o general, jamais tenha cometido tal barbaridade. Mas o político é capaz de espalhar bobagens de zap zap bem como assinar a demissão do ministro Sérgio Moro. A dúvida do mundo civil é saber se Braga Netto acredita no que recebe da rede social assim como na traição de Moro ou apenas é leal ao chefe.

Tabela divulgada em grupos de WhatsApp de bolsonaristas sobre a covid-19 Foto: Reprodução

Ramos, seu colega que se tornou político, estava na mesma reunião querendo passar um pito nos jornalistas porque estes contaram um fato, que o País tinha mais de 15 mil mortos até aquele dia em razão da covid-19. Sabe-se que a primeira vítima de uma guerra é a verdade; o que não se sabia era a adesão do governo a essa máxima. Ramos estranha o fato de a imprensa falar em 15 mil mortes pelo coronavírus quando milhares morrem em acidentes de carro todos os anos ou por que a imprensa não fala dos milhares que se curam da nova doença.

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O pior disso tudo é ter de explicar ao político o que o general devia saber. Se lesse os relatórios de campanha do Exército brasileiro nos campos da Itália, veria que os oficiais jamais registravam nos diários de unidades como o 6.º Regimento de Infantaria o total de soldados salvos na guerra. Ramos encontraria dados sobre quantas munições foram disparadas pelas companhias de petrechos pesados, quantas baixas foram causadas pelo inimigo ou pelas doenças, mas jamais encontraria ali quantos estavam vivos. Ramos quer que a imprensa reze o Te Deum antes do fim dos combates.

"Isso é bobagem sem importância. É uma 'malandragem'. Tem tanta coisa pior nos governos anteriores", disse um general, que mais uma vez pediu anonimato por não querer se indispor com os colegas. De fato, cada vez fica mais claro que Bolsonaro não foi eleito pelos seus apoiadores para mudar o que acontecia nos governos anteriores, dada a leniência em relação ao Mito. Bolsonaro, acredita um coronel intendente, foi eleito para mudar outras coisas. Mas que coisas seriam essas? Certamente, o esquerdismo dos governos passados, o desprestígio reservado às Forças Armadas e a desabrida roubalheira.

Pergunto sobre Flávio Bolsonaro, se não lhe incomodava o fato de ele recorrer pela undécima vez para impedir que a Justiça investigue suas contas. As provas se avolumam, segundo os procuradores, e as revelações que fariam corar a Gregorio Fortunato se tornam cada vez mais expostas. Multiplicam-se os testemunhos dentro do governo e se reúne à oposição até Sérgio Moro, que sempre foi visto como a garantia de probidade do Planalto. Afinal, o que Moro traiu? Por que deveria calar diante do que Augusto Aras enxerga, em tese, ser uma miríade de crimes? Quer dizer que prender Lula pode? Mas investigar Bolsonaro não?

Quais seriam os padrões de comportamento dos militares que aderiram ao governo? Esqueceram do que escreveu Samuel Huntington? Ou logo virá o argumento de que nos Estados Unidos é diferente? De que vale compartilhar a capa do livro O Soldado e o Estado, editado pela Biblioteca do Exército, em suas redes sociais, se a prática de uma centena de militares da ativa devia ser punida pelo regulamento disciplinar? Há milhares de tuítes políticos em posts publicados por oficiais superiores de forma aberta em suas contas. Desde o retuíte de manifestações de deputados ao compartilhamento de propaganda pessoal de Jair Bolsonaro.

Um velho pensador – transformado em diabo entre os adeptos do presidente – dizia que a "a prática é o critério da verdade". O Exército deve punir os que se tornam membros de uma facção enquanto usam a farda. Só assim se deterá a escalada política em sua fileiras. Pode-se argumentar que o mau uso das redes sociais foi combatido pela portaria de 2019 do general Edson Pujol. Mas alguma coisa está errada quando um coronel da ativa, da Arma de Infantaria, publica um total de 295 tuítes políticos depois que o comandante os proibiu. Ao ritmo de um por dia, o coronel devia deixar o Exército e assinar a ficha do Aliança para o Brasil, pois trabalha mais para o Mito do que para o País.

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A exemplo de Ramos e de Braga Netto, o infante completou sua metamorfose. Não é mais um militar. Valores como a neutralidade e a imparcialidade política foram destruídos nessa transformação. Como Gregor Samsa, o personagem de Kafka, um dia o coronel acordou de um sonho intranquilo e se viu transformado em uma outra criatura, nem melhor nem pior do que antes. Apenas diferente. Para os valores militares, nada mais distante do que os da política. Sua família pode tentar escondê-lo, que sempre há uma irmã misericordiosa na casa.

Um dia, Ramos e Braga Netto dirão que não disseram nada do que a imprensa publicou. Talvez alguém mesmo lhes dê razão. Mas será difícil apagar da memória do País a figura dos generais transformados em políticos. "Venceréis porque tenéis sobrada fuerza bruta, pero no convenceréis. Para convencer hay que persuadir, y para persuadir necesitaríais algo que os falta: razón y derecho en la lucha. Me parece inútil el pediros que penséis en España", disse o reitor da Universidade de Salamanca ao general Millán Astray e aos seus companheiros. Era 12 de outubro de 1936. A falange de Franco vencia, mas não convencia. E a Espanha até hoje se lembra – ainda que recriação literária – da resposta do general ao reitor: "Abajo la inteligencia, viva la muerte!"

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