Geisel autorizou ‘execução sumária’ de militantes, diz documento da CIA

Memorando de diretor da agência para então secretário americano Henry Kissinger relata reunião de generais sobre ‘política’; presidente impôs limite e controle de caso

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Por Marcelo Godoy
Atualização:

Memorando escrito em abril de 1974 por William Colby, então diretor da Agência Central de Inteligência (CIA) dos Estados Unidos, afirma que o presidente Ernesto Geisel (1974-1979) decidiu manter a política de “execução sumária” de opositores do regime militar praticada pelos órgãos de segurança durante a presidência de Emílio Garrastazu Medici (1969-1974).

Geisel, porém, segundo o documento, impôs condições ao Centro de Informações do Exército (CIE), órgão apontado como responsável pelas execuções: elas só deveriam ocorrer em casos excepcionais e com a autorização do Palácio do Planalto, mediante consulta ao diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), general João Baptista Figueiredo.

Presidente Ernesto Geisel com o então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, em estádio em Brasília, em fevereiro de 1976 Foto: ALENCAR MONTEIRO/ESTADÃO – 21/2/1976

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O Departamento de Estado Americano tirou do memorando a classificação de confidencial em 2015, ao lado de outros 404 documentos envolvendo oito países da América do Sul. Eles cobrem o período entre 1973 e 1976, durante as presidências dos republicanos Richard Nixon e Gerald Ford. Foi descoberto pelo pesquisador Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV). O memorando tem o número 99 e é da gestão Nixon.

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O assunto do documento é descrito como “decisão do presidente brasileiro Ernesto Geisel de continuar a execução sumária de perigosos subversivos sobre certas condições”. O primeiro parágrafo do memorando, com sete linhas, não foi desclassificado pelo Departamento de Estado. É provável que ali estivesse a descrição sobre quem seria a fonte da informação que Colby repassava ao então secretário americano Henry Kissinger.

O segundo parágrafo começa relatando que em 30 de março de 1974 o presidente Geisel se reuniu com os generais Milton Tavares de Souza, o Miltinho, Confúcio Danton de Paula Avelino e Figueiredo. Miltinho chefiou o CIE de 1970 a 1974 e estava passando o cargo para Confúcio. Figueiredo fora chefe do gabinete militar de Medici e estava assumindo a chefia do SNI – ele sucederia Geisel na Presidência.

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Colby traz detalhes da reunião que somente um participante lhe poderia ter contado. Por exemplo, o chefe da CIA afirma que Miltinho foi quem mais falou no encontro, especialmente, sobre o trabalho do CIE contra a subversão interna.

“Ele enfatizou que o Brasil não pode ignorar as ameaças subversiva e terrorista e disse que os métodos extralegais deviam continuar a ser empregados contra subversivos perigosos”, diz o documento. Miltinho, segundo Colby, contou a Geisel que 104 “pessoas nessa categoria haviam sido sumariamente executadas durante o ano passado (1973)”. “Figueiredo apoiou essa política e defendeu a sua continuidade.”

O relato de Colby para Kissinger prossegue afirmando que Geisel reagiu comentando que a questão seria potencialmente prejudicial a “aspectos de sua política”, a abertura. Quarto presidente do ciclo militar, Geisel planejava redemocratizar o País. O presidente teria terminado o encontro dizendo que ia pensar a respeito no fim de semana, antes de tomar qualquer decisão sobre os assassinatos. “No dia 1.º de abril, Geisel disse ao general Figueiredo que a política devia continuar, mas que se devia tomar muito cuidado para ter certeza de que só perigosos subversivos fossem executados”, escreveu o diretor da CIA.

O presidente João Baptista Figueiredo, com a faixa presidencial, ao lado do ex-presidente Ernesto Geisel Foto: Arquivo/Estadão

Segundo ele, o presidente e Figueiredo acordaram que, no momento em que o CIE prendesse uma pessoa que pudesse se enquadrar naquela categoria, o chefe do centro, o general Confúcio, consultaria Figueiredo, cuja aprovação devia ser dada antes de o prisioneiro ser executado. Os dois concordaram ainda que o CIE devia se voltar inteiramente ao combate da subversão e seus esforços seriam coordenados por Figueiredo.

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Após o dia 1.º de abril de 1974, o CIE continuou a ofensiva contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB) que matou dez integrantes de seu Comitê Central. Entre os dias 3 e 4 foram sequestrados em São Paulo, torturados em prisões clandestinas e mortos João Massena, Luís Inácio Maranhão Filho e Walter de Souza Ribeiro.

Durante essa ação, que contava com a participação do Destacamento de Operações de Informações (DOI), de São Paulo, outros centenas de comunistas foram detidos e três morreram nas dependências do DOI: o tenente José Ferreira de Almeida, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho. As mortes ocorreram fora do sigilo das ações do CIE. Em razão delas, Geisel afastou do comando do 2.º Exército o general Ednardo D’Ávila Melo, em 1976.

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OUTRO LADO

Por meio de nota, o Centro de Comunicação Social do Exército informou que “os documentos sigilosos, relativos ao período em questão e que eventualmente pudessem comprovar a veracidade dos fatos narrados foram destruídos, de acordo com as normas existentes à época”. Procurado, o Palácio do Planalto informou que não vai comentar o caso.