'França está mais perto do Brasil que EUA', diz ministra francesa

Christine Lagarde defende assento para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU e condena protecionismo

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Por e Daniel Bramatti
Atualização:

Mulher forte do governo francês, a ministra de Economia e Emprego, Christine Lagarde, não esconde a satisfação com os acordos de defesa firmados entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o colega Nicolas Sarkozy. Para ela, é mais um desdobramento de uma parceria estratégica entre os dois países. “Os dois presidentes estão convencidos da natureza estratégica da relação entre França e Brasil”, disse, ao receber o Estado na noite de segunda-feira, num hotel na capital paulista.

 

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Recém-chegada de Brasília, onde acompanhou o desfile da Independência, ela deixou transparecer o entusiasmo nos elogios a Lula, que descreve como “ícone mundial”. Afirmou que ele acertou ao dizer que a crise passaria pelo Brasil como uma “marolinha” e até o cumprimentou pela vitalidade. “Ele não parece nada desgastado pelo poder.” Ganhou cabelos brancos, observou. Em compensação, emagreceu. Num sinal de que a França poderá encampar bandeiras brasileiras, ela defendeu um assento para o País no Conselho de Segurança da ONU e condenou o protecionismo. “Temos de combatê-lo e erradicá-lo até onde for possível.”

 

Como a sra. recebeu a notícia de que o governo praticamente anunciou a compra dos caças Rafale?

Realmente, foi praticamente anunciado. Estamos muito perto. Ainda temos algumas coisas a fazer, mas sentimos que estamos pertinho, pertinho.

 

Os acordos de defesa mostram um empenho do Brasil em transformar a França em um aliado estratégico. Como a sra. avalia esses anúncios?

Eu acredito que os dois presidentes estão convencidos da natureza e do interesse estratégico da relação entre a França e o Brasil. Acho que é um sentimento que eles compartilham. Eles compartilham também a noção de urgência e o gosto pela ação. E isso nós ouvimos os dois nos dizerem: fizemos o acordo, firmamos esta parceria. Agora, ministros e líderes empresariais, ao trabalho. O presidente Lula, vocês ouviram, repetiu três vezes: trabalho, trabalho, trabalho. Ele disse a nós, ministros, cuidado com as administrações, pois elas vão sempre tentar destruir o que vocês estão construindo. Então, parceria estratégica, determinação compartilhada e gosto comum pela ação e pela aplicação dessa estratégia. De um lado, há um eixo na defesa. Na aeronáutica, contemplando helicópteros e aviões; na área naval, com os submarinos; no setor nuclear civil, já que haverá transferência de tecnologia. Isso no que se refere à área de defesa. Mas creio que, no âmbito econômico, os dois presidentes também dividem a mesma visão de uma parceria aprofundada, com a necessidade de desenvolver as relações de forma muito mais rica. Mas não estamos falando apenas de desenvolver exportações e importações, como fizemos durante muito tempo. É realmente dar uma dimensão de parceria e transferência de tecnologia. E eu diria ainda que eles compartilham uma visão geopolítica. Enxergam um mundo multipolar, que abre espaço para um grande país emergente como o Brasil. Fiquei muito impressionada com a disposição deles em firmar posições antes da conferência de Copenhague. Para que a França e o Brasil, um desenvolvido e outro emergente, avancem de mãos dadas para Copenhague.

 

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A sra. diria que o Brasil é hoje o maior parceiro da França no mundo em desenvolvimento?

Com esse grau de troca e essa diversidade, sim. Não é o único. Acho que o presidente foi muito claro ao dizer que deseja desenvolver a relação com Brasil, Índia e Egito. São os três países que ele mencionou e penso que é nessas nações que ele apoiará a política internacional francesa. Mas ele também disse claramente que, na América Latina, é o Brasil. É este o grande ponto de apoio estratégico.

 

Mas, considerando que a França é um país construído sobre o conceito de segurança social, não é contraditório ver um país desigual como o Brasil gastando bilhões em defesa?

Essa decisão faz parte de uma visão de médio e longo prazo. O presidente Lula foi muito claro quando relacionou as riquezas petrolíferas, as riquezas do solo e subsolo brasileiros, as implicações que isso tem e a necessidade de desenvolver uma defesa sólida. A parceria franco-brasileira é também uma troca sobre a organização do País, sobre propriedade intelectual. Há muitos exemplos de outras formas de cooperação. Talvez menos emblemáticas que a defesa.

 

Esse movimento, na sua visão, é parte de uma corrida armamentista na América Latina?

Eu não conheço a América Latina o suficiente para dizer isso. Mas vi o desfile militar esta manhã e a mistura das Forças Armadas com forças esportivas, forças das juventude, é uma belíssima imagem de mobilização da sociedade brasileira. E isso não me passa o sentimento de ser algo puramente militar. Aliás, interessou muito aos nossos militares franceses.

 

Mas há também uma preocupação com relação ao custo financeiro do acordo. Como a sra. responde?

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Não tenho como responder, primeiro porque não sei exatamente qual foi o preço. Houve um comunicado sobre o assunto, não tenho como fazer comentários sobre isso.

 

O presidente Lula quer um assento no Conselho de Segurança da ONU. Sabemos que a França é favorável, mas a sra. acha possível?

Sim, acho que é possível, porque vi o presidente da República francesa se lançar em iniciativas nas quais ele estava convencido de suas visões, mas começou muito isolado. E, pouco a pouco, ele angariava apoio no seu entorno, graças a sua convicção e sua determinação sobre questões como os paraísos fiscais, a necessidade de o G20 regulamentar problemas financeiros na crise que atingiu o mundo nos últimos doze meses , muito só. Sei que, no caso do assento do Brasil no Conselho de Segurança, ele nunca mudou de ideia. Desde que ele encontrou o presidente Lula e examinou essa situação, ele sempre esteve convencido de que o Brasil deveria estar presente no conselho.

 

No G20, podemos esperar uma união entre o Brasil e a França?

Acabei de voltar do encontro de ministros de Finanças do G20. Eu e Guido Mantega mantivemos sempre a mesma posição. No G20 financeiro, há um trabalho de preparação e doze horas de redação extremamente árduas de um comunicado. Durante todo esse tempo, o negociador brasileiro e o negociador francês estavam juntos. Em seguida, na plenária, eu apoiei as posições de Guido e ele apoiou as minhas. Então, estávamos extremamente unidos em nossa estratégia.

 

Porque essa união acontece agora?

Acho que esses dois líderes que são o presidente Lula e o presidente Sarkozy, mesmo com suas diferenças – eles não têm a mesma história, nem o mesmo temperamento – dividem a mesma paixão e a mesma convicção. E isso se reflete nas negociações internacionais.

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Onde ficam os Estados Unidos nessa relação? Afinal, havia competição americana na negociação sobre os caças Rafale.

Mas aí é uma questão de concorrência. Americanos, suecos, franceses, quem entra no mercado enfrenta uma concorrência árdua, intensa. No que se refere à organização internacional, é difícil dizer. Mas creio que a França está hoje mais próxima dos pontos de vista do Brasil que os Estados Unidos. São posições que podem mudar com o tempo. Mas a força que tivemos nos últimos doze meses tem a ver com o fato de termos caminhado juntos também no plano econômico e financeiro. Toda vez que fizemos ações coordenadas, como para baixar taxas de juros, nós tivemos sucesso.

 

No início, o presidente Lula disse que a crise passaria pelo Brasil como uma ‘marolinha’. A sra. acha que ele tinha razão?

Quando vejo a taxa de crescimento de vocês, o fato de o consumo não ter realmente recuado e continuar a sustentar a economia, ele tinha razão em dizer isso.

 

Essa situação de crise pode afetar a relação com o Brasil?

Quando vemos a progressão do comércio entre França e Brasil, não acho que a crise tenha afetado muito nossas relações. Constatamos um aumento muito forte no comércio de bens. E, no caso dos investimentos, as empresas francesas continuaram destinando recursos ao Brasil. Então, não penso que a crise tenha freado de forma violenta esse movimento. Estou convencida de que vamos incitar nossos líderes empresariais e industriais a prosseguirem nesse sentido. A ideia é empurrá-los – ou melhor, são todos gente grande, não precisam que digamos onde está seu interesse. Mas podemos ver de que forma o poder público pode ajudá-los a intensificar as relações entre as empresas dos dois países.

 

O presidente Lula costuma dizer que países desenvolvidos não devem dizer ao Brasil como gerenciar a Amazônia, pois já destruíram suas próprias florestas. A sra. concorda ou defende que a Amazônia é um patrimônio da humanidade?

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Não é que a floresta seja um patrimônio. São os efeitos que a floresta tem na atmosfera e no aquecimento global. E isso é relevante para toda a comunidade mundial. Não se trata de ter uma ação territorial ou de questionar a soberania do Brasil quanto ao seu território. É avaliar as consequências da gestão de uma floresta tão imensa e indispensável quanto a Amazônia e também debater políticas que podem ter um efeito que vai muito além do Brasil. Acho que é mais uma questão de tomar consciência da externalização resultante da gestão de um bem tão indispensável quanto este. Mas ninguém contesta que ele pertence ao Brasil. E um pouco à Guiana, afinal temos um pedacinho.

 

O presidente também costuma dizer que os países em desenvolvimento não podem pagar o mesmo preço que os desenvolvidos na hora de estabelecer limites de emissões de gases. A sra. concorda ou todos devem fazer um esforço?

Todos devem fazer um esforço. E, depois, ponderações e aspectos de transferências serão tema de negociação em Copenhague. Se não me engano, a partir de amanhã (terça-feira) um grupo de trabalho vai se reunir, brasileiros e franceses, para trabalhar essas questões e apresentar propostas.

 

Mas faz sentido o argumento do presidente, de que os emergentes não podem pagar o mesmo preço?

Veremos na posição comum que vai ser acordada entre os dois países. Entendo esse ponto de vista. Mas será que vale mesmo a pena buscar a eficácia diante de um problema que é um problema de urgência?

Por isso espero que os ministros de Finanças sejam incluídos nas conversas.

 

Outro ponto recorrente em discursos do presidente é que ele teria construído uma boa imagem para o Brasil. A França tinha uma boa relação com Fernando Henrique Cardoso. Realmente melhorou?

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O presidente Lula construiu uma visibilidade, uma reputação, uma legitimidade no cenário internacional inegáveis. Não se trata de colocar em questão o papel que exerceu o presidente Cardoso antes dele. Mas, hoje, o presidente Lula é um ícone mundial. Não é o único. Mas é um verdadeiro ícone.

 

A sra. concorda com o presidente Obama de que ele “é o cara”, diante da alta popularidade de Lula nas pesquisas de opinião?

Tenho certeza de que ele tem muitos caras. Mas não me surpreende. Eu olhava o presidente Lula no desfile desta manhã (segunda-feira) e, no olhar das pessoas na multidão e dos que desfilavam, há uma espécie de admiração e afeto incrível. Então, não surpreende que haja opiniões favoráveis nas pesquisas, mesmo depois de um segundo mandato. É uma grande conquista.

 

O Brasil tem um peso muito grande no comércio agrícola e poderia estar melhor se não fosse o protecionismo. A sra. vê um futuro sem protecionismo?

Não, não vejo futuro para o protecionismo. Acho que temos de combatê-lo e erradicá-lo até onde for possível. Uma vez colocada essa posição, ainda estamos sofrendo com a Rodada Doha. Eu conversei com o Celso Amorim hoje – ele é um bom amigo – e ele me disse que as coisas estão mudando. Europeus têm avançado nesse sentido. Vamos torcer para que os líderes resolvem os problemas em Doha.

 

O Brasil enfrenta problemas, principalmente, com biocombustíveis.

Mas isso está melhorando. Houve uma reorganização na regulamentação que permitiu que o etanol fosse reclassificado em uma diferente categoria, o que permite sua importação pela França. Mas acho que o mais importante é pensar em transferência de tecnologia agroalimentar. Eu estive esta manhã com a Bonduelle. É a líder mundial em ervilhas, milho, cenouras, feijão, aspargo enlatados e embalados a vácuo. Ela está abrindo uma grande fábrica em Cristalina, Goiás, onde vai desenvolver a produção de vegetais enlatados e empregar 500 pessoas de início. Então, processamento de alimentos também é uma área onde podemos transferir tecnologia. Não apenas em grandes aeronaves, grandes submarinos. Mas também na indústria de alimentos. Esperamos que isso continue, pois a nossa ideia é adicionar valor em vez de exportar matéria-prima bruta.

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Há algum tempo, foi noticiada a possibilidade de empresas francesas investirem em obras do Programa de Aceleração do Crescimento. Isso foi discutido?

Isso não foi discutido, mas há duas coisas que estão atualmente colocadas. Há um comitê técnico, no nível de administrações e serviços públicos, para identificar possibilidades, dificuldades e riscos de protecionismo, etc. Esse comitê se reuniu pela primeira vez em julho. E amanhã (terça-feira)teremos uma primeira reunião de um grupo de alto nível com líderes empresariais. Com o comitê, que tenta eliminar obstáculos, e o grupo de alto nível, que tenta trabalhar melhor, acho que poderemos encorajar investimentos. Eu não creio muito em grandes decisões governamentais que interfiram no setor privado. Acho que as empresas privadas encontram seu interesse em investir, fazer parcerias e transferir tecnologia na medida em que isso lhes traz um retorno. Nosso papel, como governo, é facilitar e organizar. Mas elas vão encontrar seu caminho. De qualquer forma, tenho muita esperança. E há muita alegria no Brasil, e isso nos faz muito bem.

 

O presidente Lula é mais alegre que os outros?

Ele não me parece desgastado pelo exercício do poder, de verdade. Eu o vi em 2005, quando ele esteve em Paris. Então, eu o reencontrei agora, quase cinco anos depois, e ele não está desgastado pelo poder. Ele ganhou alguns cabelos brancos, mas ele emagreceu muito. Muito. Isso lhe caiu bem. Muito bem. Mas acho que todos os presidentes emagrecem.

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