‘Foi decisão minha’, diz médico sobre adiar análise que pode barrar ‘kit covid’ do SUS

Indicado por Queiroga para gerar diretrizes para o tratamento da covid-19, Carlos Carvalho afirma que não houve interferência política ao retirar discussão da pauta da colegiado e pede mais prazo para avaliar novos estudos publicados

Por Cristiane Segatto
Atualização:

O pneumologista Carlos Carvalho, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), afirma que a análise sobre uso de medicamentos do chamado “kit covid” na fase pré-hospitalar foi retirada da pauta da reunião da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) por solicitação dele. 

Carvalho foi escolhido para gerar diretrizes para o tratamento da covid-19 pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. Abaixo, os principais trechos da entrevista. 

Mesmo sem eficácia comprovada no tratamento de covid-19, uso da cloroquina é defendido por Bolsonaro. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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Como ficou a decisão da Conitec sobre a questão do uso de cloroquina no SUS? 

Em primeiro lugar, não sou membro da Conitec . A comissão tem vários representantes de diversos lugares que nem sei quem são. Fui convidado para participar hoje, assim como tenho sido convidado desde junho porque, a pedido do ministro Marcelo Queiroga, estou fazendo um trabalho para gerar diretrizes para o tratamento da covid-19. 

Montamos uma linha de cuidado. Desde o momento em que o paciente está em casa até o momento em que precisa ser internado, usar oxigênio, ser intubado etc. Todas as etapas até ele ter alta e voltar para casa. É um trabalho longo. Vamos ter oito documentos. Quatro já foram aprovados pela Conitec. Quando tem reunião para aprovação, eles me convidam para apresentar.

Hoje havia três documentos em pauta que foram gerados pelo nosso grupo. Apresentei dois e o terceiro saiu de pauta. O que saiu de pauta foi o documento sobre o tratamento pré-hospitalar para covid-19. 

Esse tratamento pré-hospitalar seria o tratamento precoce?

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Tratamento precoce faz sucesso nas colunas de jornal. As pessoas podem entender tratamento precoce como uma coisa preventiva. Não tenho nada e aí tomo um troço para prevenir. O tratamento preventivo contra a covid-19 que já se mostrou eficaz é um só: a vacina. A única coisa que previne é a vacina. Há outro sentido para o tratamento precoce. Por exemplo: comecei a ficar doente, meu nariz está escorrendo e vou tomar um antigripal. Esses são os tratamentos sintomáticos. Ou estou com gripe e vou tomar um medicamento antiviral que mata o vírus influenza. Isso é discutido nesse documento de tratamento pré-hospitalar. Ou seja: o indivíduo não está tão grave a ponto de precisar de uma internação. O tratamento precoce visa prevenir que ele precise de uma internação. 

O tratamento precoce defendido pelo presidente Bolsonaro (tomar cloroquina e outras drogas do chamado kit covid na esperança de não adoecer) está discutido nesse documento?

Sim, nos primeiros quatro documentos já discutidos na Conitec havia um capítulo sobre o tratamento intra-hospitalar. Esse assunto foi discutido na fase hospitalar. O tratamento hospitalar já está definido. Esses medicamentos aos quais você se refere não tem nenhuma indicação no tratamento hospitalar. 

Hoje seria apresentado um documento que avalia o tratamento farmacológico pré-hospitalar. Essas drogas também foram estudadas. Existe uma conclusão a respeito desses medicamentos, como existe uma conclusão a respeito de antibióticos, de corticoides, de anticoagulantes e de tudo o que tem sido usado até hoje para o tratamento da covid-19. 

Qual é a conclusão sobre o chamado “kit covid”?

Como o documento saiu de pauta e será reapresentado, ele não é público ainda. Não posso adiantar uma coisa que ainda não é pública. Coordeno um grupo de professores, pesquisadores e médicos especialistas nessa área e fizemos o documento. Solicitei a todos eles que não adiantassem nenhuma informação até que as conclusões sejam apresentadas na reunião Conitec. Seria apresentado hoje. Como saiu de pauta, não foi. Não seria ético de minha parte adiantar a você algo que não foi apresentado. 

O pneumologistaCarlos Carvalho;'Estamos procurando opções que possam ser úteis para tratar o paciente com covid', afirma Foto: Werther Santana/Estadão 11/11/2020

Pelo perfil do grupo, posso imaginar que vocês prezam as evidências científicas, certo?

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Sim, é um grupo formado por professores e pesquisadores da Unesp de Botucatu, da Escola Paulista de Medicina (Unifesp), da USP, da Unicamp, das melhores universidades de São Paulo e de fora do estado. Foi montado um time de especialistas de diversas sociedades médicas. A Academia Nacional de Medicina indicou seus representantes. Todos são mais ou menos envolvidos com ciência e defensores dela. Se você vai fazer uma ilação e tirar alguma conclusão, isso é particular seu. 

Por que a decisão saiu de pauta?

Foi uma solicitação minha. O documento que estava em pauta havia sido feito com as informações científicas vigentes até o final de agosto. Todos os trabalhos científicos publicados em setembro não estavam contemplados. No final de setembro foi publicado um artigo bastante impactante que, na minha interpretação, pode mudar a conclusão do nosso relatório. Além desse artigo, surgiram outros porque todos os dias saem cinco ou dez artigos sobre covid-19. Por isso, eu solicitei à Conitec um prazo a mais para o nosso grupo se reunir e reavaliar esses novos artigos. Nesse documento vamos indicar potenciais tratamentos para pacientes com covid, na fase pré-hospitalar. A comissão concordou em dar um tempo a mais para que nós façamos essa reavaliação do outro documento. 

O pedido de adiamento foi feito pelo sr. hoje durante a reunião?

Não, enviei esse pedido à Conitec no começo desta semana. Hoje foi informado durante a reunião que sairia de pauta. Como não conheço o rito da Conitec e do Ministério da Saúde, fiz uma consulta sobre a possibilidade de ser feita uma revisão do documento. Aí pediram que eu enviasse uma carta solicitando a retirada de pauta, com uma justificativa. Durante a reunião, explicitei essa justificativa a todos os membros da Conitec e houve a concordância em nos dar mais tempo para que façamos essa adaptação. 

Qual é o estudo impactante que pode mudar a conclusão do relatório?

É um estudo que foi publicado no The New England Journal of Medicine (NEJM) no final de setembro sobre uma combinação de anticorpos monoclonais. Minha preocupação é dar à população remédios que tratem a covid. Não estou preocupado com remédios que outros falam. Não tenho nada a ver com isso. Como eles deram tempo a mais, a literatura vai ser revisada. Fizemos a revisão de janeiro do ano passado até agosto deste ano. Agora vamos fazer de primeiro de setembro até o final de setembro para completar a nossa avaliação da literatura científica. Obviamente, esse estudo importante vai aparecer. Ao mesmo tempo, vão surgir outros estudos. Vamos avaliar todos. Se tiver algum outro que possa influenciar as nossas decisões, eles serão absorvidos. Nosso compromisso é com a ciência e com o resultado da melhor opção para os pacientes. Não queria que hoje saísse da reunião um documento “morto”, sem a possibilidade de incorporação desse remédio -- se ele for muito bom mesmo. 

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O paciente com covid pode receber uma série de medicações: corticoides, anti-inflamatórios, anticoagulantes, antibióticos, antivirais, antimaláricos (como cloroquina), antiparasitários (tipo ivermectina). Tudo o que já saiu na literatura sobre remédios que foram usados para tratar covid é discutido nesse documento. Chega-se a uma conclusão sobre cada um deles. Não paramos vinte pessoas importantes para discutir dois remedinhos. Seria uma imbecilidade. Estamos discutindo uma linha de cuidado completa (desde que está em casa até a UTI). Discutimos como diminuir a mortalidade do paciente na UTI, o que fazer quando falta oxigênio, etc. 

A nossa visão é diferente. Não temos nada com essa briga. Se existe um remédio que mostra um potencial de tratamento, quero incluir no documento que vai indicar tratamento para a população. A avaliação de todas as drogas é importante. Recomendar um medicamento é importante, mas não recomendá-lo também tem o seu papel. Até porque mesmo as drogas ineficazes contra a covid têm efeitos colaterais que precisam ser considerados. Estamos procurando opções que possam ser úteis para tratar o paciente com covid. Morrem 500 pessoas por dia de covid no Brasil. Não dá para viver nesse mundo. 

O adiamento da decisão foi uma determinação que veio do ministro ou do presidente? 

Não. Mandei uma carta no início da semana para a presidente da Conitec, Vania Canuto, explicando os motivos pelos quais eu gostaria de ter a oportunidade de avaliar esses novos tratamentos. Não sou presidente do colegiado da Conitec. Nem sei onde fica a comissão. Não vou a Brasília há uns dois ou três anos. Não tenho nada a ver com isso.  

Quando o ministro assumiu a pasta, ele me disse que cada sociedade médica faz uma diretriz diferente sobre como deve ser tratada a covid. O Ministério da Saúde já fez três diretrizes e o profissional que está na ponta não sabe qual é a melhor. O ministro me pediu para reunir todo mundo envolvido nisso e fazer uma diretriz para o Ministério da Saúde. Conversei com os presidentes de todas as sociedades, cientistas e pesquisadores que estavam fazendo essa linha de cuidado. 

O ministro disse à CPI, na primeira vez em que foi, que havia um grupo coordenado por mim que está analisando as diretrizes e vai apresentar isso à Conitec. Depois que ele disse isso, tive que apresentar, virtualmente, todos os protocolos à comissão. 

Quando sairá a decisão?

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Pedi pelo menos 15 dias. Se nosso grupo conseguir terminar nesse prazo, pode haver uma reunião extraordinária da Conitec. Se ficar pronto apenas no final do mês, o assunto fica para a próxima reunião da comissão, no início de novembro. O documento já está pronto. É só ver se tem alguma coisa a mais para acrescentar.

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