Federalismo truncado será o maior desafio

Para o economista Eduardo Giannetti, a ?Belíndia? já virou ?Ingana?: o Estado arrecada como a Inglaterra e tem problemas sociais como Gana

Por Agencia Estado
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?Belíndia? virou ?Ingana?. Se na década de 80, o Brasil era uma Bélgica cercada por uma Índia, como definiu o economista Edmar Bacha, agora o País já pode mudar de nome. ?É o Ingana: um Estado que arrecada como a Inglaterra e tem problemas sociais como Gana?, considera o economista e sociólogo Eduardo Giannetti da Fonseca, de volta ao Brasil, depois de quatro meses na Inglaterra, e cada vez mais preocupado com o tamanho e a voracidade da máquina pública no País. ?O Estado fica com um terço da renda nacional, mas gasta demais e investe pouco porque está usando isso para consumo próprio: Previdência, Estados, municípios e funcionalismo?, critica Giannetti. Autor de alguns livros instigantes ? como ?Vícios Privados, Benefícios Públicos? (1991) e ?Auto-engano? (1997) ? e professor de História do Pensamento Econômico das faculdades do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), Giannetti precisou ?submergir? em Oxford para concluir sua próxima obra, ?Felicidade?, uma reflexão sobre a origem material e espiritual desse sentimento, que deve ser lançada no segundo semestre. De volta à realidade, o professor acha que o próximo presidente tem o desafio inadiável de atacar a principal origem do ?Ingana?, o que ele chama de ?federalismo truncado?. Isso significa levar o pêndulo da descentralização até o fim e fazer a reforma tributária e fiscal, mas principalmente acabar com o déficit público de uma forma mais radical, extingüindo municípios e acabando com algumas prerrogativas do funcionalismo. Sem ilusões quanto às dificuldades para um candidato enfrentar o problema, o professor vê uma lógica política na proliferação de municípios. ?Como não existem mais os bancos estaduais e nem se pode driblar a restrição orçamentária, se inventou uma nova técnica de acesso aos recursos públicos?, analisa. Mesmo assim, ele torce para que o futuro presidente tenha coragem de quebrar esse sistema e que isso seja feito no início do mandato. ?Se não fizer nos seis primeiros meses, não faz mais.? A seguir a entrevista: Estado ? No ano passado, o senhor disse que o PT perderia suas ilusões pelo caminho. A tentativa de aliança com o PL é uma prova disso? Giannetti ? Sem dúvida. O PT antecipou um problema que fatalmente surgirá caso vença as eleições. Ninguém governa o Brasil sem um amplo leque de alianças. Provavelmente a cúpula do PT descobriu isso. Só que o caso explicitou dentro do partido uma enorme falta de coesão. Não existe acordo sobre a natureza e a extensão dessas alianças. E não é uma aliança natural do PT, soa muito esquisito. Ficou claramente caracterizado o desespero eleitoral do partido. Agora, o mais surpreendente é que isso não tenha caído como um raio em ceú azul dentro do partido. A sociedade ficou assustada ao perceber a falta de adesão do próprio partido a uma iniciativa tomada pelo seu líder. De qualquer forma, acho salutar que isso seja discutido antes e não depois. Estado ? PT mais PL resulta numa soma? Giannetti ? Até agora eu usava como regra de bolso o determinante de que Lula estaria no segundo turno. Pois perdi minha única certeza sobre a eleição. Já não sei se Lula está no segundo turno. Esse episódio do PL revelou uma fragilidade interna do partido e até uma indisposição do Lula em continuar dada essa fragilidade. O quadro eleitoral ficou mais indeterminado. Estado ? E a candidatura Roseana Sarney? Giannetti ? Por enquanto me parece um grande fenômeno de mídia, que cria uma enorme dúvida sobre a viabilidade da candidatura José Serra. O problema do Serra é chegar ao segundo turno. Chegando lá, ele ganha, porque pega o centro e fica quase imbatível. Não consigo imaginar alguém ganhando dele no segundo turno. O problema é que se a Roseana crescer muito, Serra pode não chegar lá. Seria crucial para Serra juntar a base governista, mas será um xadrez complicado. A candidatura Roseana já ganhou vida própria e acho que hoje é quase irreversível. Estado ? Dá para se dizer que o Congresso evoluiu, investigando políticos importantes e restringindo a imunidade parlamentar. Giannetti ? Acho que é um processo de amadurecimento institucional. Apesar de todas as falhas, o Brasil está vivendo num clima de absoluta normalidade constitucional. Mas há muito o que fazer. E um tema com que estou muito preocupado é o federalismo. Estado ? O federalismo está malresolvido? Giannetti ? Se há uma coisa malresolvida na vida política brasileira é a relação entre as instâncias de poder. Se você examinar nossa história, vai notar um pêndulo entre movimentos de centralização e descentralização. A Constituição jogou o pêndulo para a descentralização, mas ele ficou no meio do caminho. Estamos vivendo agora o fenômeno do federalismo truncado. Embora a Constituição tenha decidido pela descentralização, não completou o movimento. Você desmontou o Estado centralizado do regime militar, mas não criou no seu lugar um genuíno Estado federativo. Estado ? E quais são as conseqüências? Giannetti ? O poder de arrecadar. No Estado federativo, o poder de arrecadação tem de passar para Estados e municípios. O dinheiro não pode continuar todo sendo arrecadado pelo governo central e depois distribuído de volta. Isso criou uma enorme responsabilidade fiscal em Brasília e levou a um brutal aumento da carga tributária no País. Talvez seja o que de mais grave ocorreu no governo Fernando Henrique. Passamos de uma carga tributária de 27% do PIB para 34% do PIB, ou seja, um terço da renda nacional. De cada três horas que nós brasileiros trabalhamos, uma vai para os cofres públicos. Dificilmente um país de renda média tem uma carga tributária acima de 25% do PIB. E o governo ainda é acusado de neoliberal... Estado ? E mesmo assim as contas públicas não estão equilibradas... Giannetti ? Pois é, se a carga tributária é um recorde brasileiro em qualquer época, se nunca se pagou tanto imposto, o mínimo que se poderia esperar é que as contas públicas estivessem equilibradas. Aí você constata que o Estado segue gastando bem mais do que arrecada. Atualmente, algo em torno de 4% a 5% do PIB. Estamos falando de um Estado, que no seu conjunto, intermedia 40% da renda nacional. Estado ? E para onde vai toda essa arrecadação? Giannetti ? Também seria de se esperar que o Estado brasileiro estivesse investindo muito em infra-estrutura e programas sociais. Aí você constata que a infra-estrutura do setor público está em franca deterioração, que problema da saúde pública é tão grave quanto sempre foi. De um total de 42 milhões de domicílios no Brasil, 24 milhões não têm rede de esgoto, 8 milhões não têm água encanada, 8,6 milhões não têm coleta de lixo. No caso da educação, houve avanço: 97% das crianças entre 7 e 14 anos freqüentam escola. Mas a qualidade do ensino continua deficiente: 40% das crianças que entram no primeiro grau ainda repetem o ano. Estado ? Mas para onde vão todos esses recursos? Giannetti ? Esse é o ponto central. Existem três fatores que impedem o Estado de investir: um é a conta de juros muito alta sobre o estoque de dívida interna, mas é uma coisa separada. O segundo capítulo é a Previdência. O Brasil gasta hoje 10,8% do PIB com aposentadoria. Isso é um absurdo, porque só temos 4,5% da população acima de 65 anos. Os países desenvolvidos, que têm 12.5% de idosos, gastam 14% do PIB com aposentadoria. Se o Brasil fosse gastar o equivalente estaríamos gastando 5,5% e não 10,8%, o dobro. Estado ? E o terceiro é o federalismo truncado... Giannetti ? Aí entramos em cheio na questão do federalismo. Aumentou muito a receita disponível dos três níveis de governo. Os municípios tiveram aumento real de repasse de 2,4% do PIB em 1988 e hoje essa transferência é de 5,6% do PIB. Nos Estados, o aumento da receita disponível (arrecadação mais transferências) aumentou de 6% para 8,6% do PIB. Se você soma Estados e municípios, o ganho no período foi de 5,8% do PIB. E a União também aumentou sua receita disponível. Passou de 14% do PIB em 88 para 19,1% em 2001. Estado ? Qual é a mágica? Giannetti ? Uma das razões é que a União, para não perder receita, começou a inventar contribuições, que ao contrário de impostos, não precisa compartilhar com Estados e municípios; Cofins, PIS, CPMF. A jogada é driblar a descentralização. Estado ? E quem pagou a conta foi a sociedade. Giannetti ? A sociedade brasileira carrega hoje um Estado muito maior do que costumava carregar. Onde cresceu mais? E aí começamos a chegar no mistério de porque o aumento da carga tributária não redunda em melhoria de programas sociais. O Brasil criou 1.070 municípios de 1990 para cá. Eram 4.491 em 1990. Hoje são 5.561. E quanto custam as 5.561 Câmaras Municipais? A Constituição impõe um piso mínimo de nove vereadores. Na média brasileira, são 11,1 vereadores por Câmara. Isso dá um total de 61 mil vereadores. Foi provavelmente o ramo de atividade que mais cresceu no País nessa época. Só que é um mercado de parasitismo, porque não gera um real de valor. Ele só absorve. Minha estimativa é de que carregar 5.561 Câmaras está custando R$ 3,7 bilhões por ano. O governo Fernando Henrique adora dizer que a bolsa-escola é o maior programa de distribuição de renda da história do País. Quanto movimenta a bolsa-escola? R$ 2 bilhões por ano. É quase a metade do custo dessas Câmaras. Essas Câmaras talvez sejam o maior programa de concentração de renda da história do Brasil. Estado ? O senhor está propondo a extinção de todas essas Câmaras? Giannetti ? Não, claro. Agora, 91% dos municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes. Esses municípios não arrecadam localmente o que gastam. Eles jogam a conta para o resto da sociedade. É um cordão umbilical. Eles vivem de mesada. É uma receita de parasitismo econômico. Ao contrário do discurso das oposições, o Estado brasileiro cresceu muito nos últimos dez anos. Só no Brasil neoliberalismo significa um Estado que intermedia 40% da renda nacional. Estado ? E por que os candidados não falam sobre isso? Giannetti ? Porque isso é o maior vespeiro político. Você vai mexer num grupo organizado e influente no processo eleitoral. Há uma lógica política por trás da proliferação de municípios e Estados. É uma maneira de conquistar apoio e alavancar votos. Como não existem mais os bancos estaduais e nem se pode driblar a restrição orçamentária, se inventou uma técnica nova de acesso aos recursos públicos: aumentando a arrecadação e criando mecanismos de transferência constitucional. Estado ?Como se conserta esse federalismo? Giannetti ? Tenho uma regra simples: o município que não arrecada uma porção mínima do que gasta, digamos 30%, não tem realidade financeira e não deveria existir. Até 1988, vereadores de municípios pequenos não recebiam honorários. Por que não voltar à regra antiga? Será que para fazer uma reunião semanal, se tanto, é preciso que o contribuinte pague honorários de R$ 3 mil ou R$ 4 mil por mês para cada vereador? Um exemplo interessante é o de Ituiutaba, em Minas, que tem 85 mil habitantes. Eram 17 vereadores que custavam, por ano, R$ 4,5 milhões. Houve uma ação popular vitoriosa para cortar oito vereadores. Isso economizaria para o município R$ 8,5 milhões ao longo da legislatura. O que aconteceu? A Câmara recorreu da decisão e criou uma ação contra o povo. O que é uma loucura. Os representantes do povo em disputa com o povo. Agora, eu pergunto: se uma cidade como Londres não tem vereador, porque Ituiutaba precisa de 17 vereadores? Estado ? O senhor coleciona esses casos? Giannetti ? Estou colecionando. Em Jaboatão, em Pernambuco, tem 1.322 funcionários na Câmara. É mais do que fábrica da Volkswagen, em Resende (RJ). Já vivemos na ?Belíndia?, com um pequeno núcleo de Bélgica cercado por um continente de Índia, agora é o ?Ingana?: um Estado que arrecada como a Inglaterra e tem problemas sociais como Gana. É o ?Ingana? do federalismo, que ficou malresolvido. Estado ? Mas como resolvê-lo se nenhum candidato parece disposto? Giannetti ? É uma questão de coragem, iniciativa e despreendimento. E a chance para mudar é no início do mandato do novo presidente, quando ele tem capital político, a força, a liderança para quebrar um sistema montado e de muita resistência. Se não aproveitar os seis primeiros meses, não vai fazer mais. Todos os candidatos vão ter no fundo o mesmo objetivo: retomar o crescimento, sem sacrificar a estabilidade monetária e melhorando a distribuição de renda. A questão não é o quê, mas como chegar lá. E uma das razões pelas quais não há crescimento é que se investe pouco no Brasil. E por quê? Porque estamos consumindo muito da nossa renda. Porque o Estado está arrecadando um terço da renda nacional e não está usando essa renda para novos investimentos, mas para consumo próprio. Está diminuindo os recursos à disposição do setor privado para o investimetno privado e transformando essa poupança em consumo do setor público: Previdência, Estados, municípios, funcionalismo... Para compatibilizar crescimento com estabilidade monetária e distribuição de renda temos de quebrar esse sistema. E isso só se faz solucionando o federalismo truncado. Até aceito, a contragosto, manter a carga tributária. O que não dá para aceitar é que os programas sociais sejam o que são. Isso é inadmissível para qualquer partido. Temos de melhorar o perfil do gasto público no Brasil. E uma das melhores maneiras é liberar recursos que hoje estão muito mal-empregados. É fazer a reforma tributária, reforma fiscal. Estado ? E o senhor espera que o novo presidente tenha essa coragem? Giannetti ? Não só espero como torço. Na Previdência, tem de partir para uma regra simples: não vai ter mais acúmulo de aposentadoria no setor público. Cada um escolha uma. Não vai mais ter o reajuste automático toda a vez que aumenta os salários da ativa. O que é isso? Um país jovem com gasto de aposentadoria de país velho? Gastamos mais com o déficit da Previdência do setor público do que gastamos com toda a educação fundamental. Os três milhões de inativos e pensionistas da União, Estados e municípios recebem mais recursos públicos do que as 37 milhões de crianças que frenqüentam a escola pública. Enquanto isso continuar, estaremos condenados a viver na miséria e na bignorância.

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