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'Façam reportagens e escrevam, os censores que cortem'

Ordem nas redações do 'estado' e do 'Jornal da Tarde' era continuar apurando e redigindo normalmente; textos censurados davam lugar a poemas, receitas e cartas fictícias

Por José Maria Mayrink - O Estado de S.Paulo
Atualização:

O general Sílvio Correia de Andrade, chefe da Polícia Federal, telefonou à noite para a Redação de O Estado de S Paulo, para saber qual seria a manchete do dia seguinte. Câmara nega; prontidão, informou o editor-chefe, Oliveiros S. Ferreira, sem mais explicações. O general desligou o telefone, aparentemente satisfeito. Na manhã seguinte, 13 de dezembro de 1968, o jornal foi apreendido. A censura começou, para o jornal de Julio de Mesquita Filho, antes da edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que sufocaria a imprensa nos anos seguintes.

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O general não gostou do editorial Instituições em frangalhos, que criticava a atitude do presidente Costa e Silva, diante da resistência dos parlamentares, que se recusaram a dar licença para o governo processar o deputado Márcio Moreira Alves, da oposição, que havia feito dois discursos no plenário considerados ofensivos às Forças Armadas. Pela primeira vez, os censores instalaram-se no jornal, pois eles ainda não frequentavavam a Redação, embora desde 1964 houvesse muita pressão, ameaças e até atentados contra a imprensa.

O editorial, duro e corajoso, foi o último texto que Julio de Mesquita Filho escreveu. Revoltado com a apreensão do jornal, mandou seu filho Julio de Mesquita Neto dizer ao governador Roberto de Abreu Sodré e ao general Correia de Andrade que, em nenhuma hipótese, faria autocensura. Se o governo quisesse proibir alguma notícia, que pusesse censores na Redação. Sua resistência custou caro. O preço que pagamos foi, em primeiro lugar, a vida de meu pai², disse o jornalista Ruy Mesquita, em março de 2004, referindo-se à morte de Julio de Mesquita Filho. Ele caiu doente e morreu sete meses depois, em julho de 1969

Milhares de cópias do Estado chegaram às ruas na manhã do dia 13, apesar do cerco policial..Improvisamos uma canaleta de madeira e escoamos mais de 60 mil exemplares em caminhões-caçamba, que saíam de trás de um tapume, enquanto os policiais barravam os caminhões-baú da frota de distribuição², lembra o arquiteto Hagop Boyadjian, então responsável por obras de reforma no prédio da Rua Major Quedinho, onde funcionava o jornal, no centro da cidade. Foi uma operação de guerra montada pelo pessoal da expedição.? Repórteres e editores do Jornal da Tarde, vespertino do Grupo Estado, também proibido de circular, recorreram a um esquema semelhante para garantir a distribuição. Seu diretor, Ruy Mesquita, se recusou a trocar textos considerados mais exaltados, após ter publicado, no dia 12, um editorial com o título ³Mais uma demonstração de inviabilidade do regime.. Enquanto a polícia vigiava a Rua Major Quedinho, 84.900 exemplares escaparam pela Rua Martins Fontes, do outro lado do prédio.

Na noite de 13 de dezembro, os jornalistas, atônitos, se agrupavam ao lado de um aparelho de TV para assistir ao anúncio do AI-5. No vídeo, o locutor oficial Alberto Curi leu o texto ao lado do ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, ex-reitor da Universidade de São Paulo. Era uma medita esperada, apesar de desmentidos de autoridades como o ministro Jarbas Passarinho, mas no primeiro momento ninguém sabia o que fazer. Foi nessa hora que os censores se instalaram na Redação. Um grupo de repórteres e redatores atravessou a Rua da Consolação para conversar num boteco, quando o jornal começou a rodar. Alguns pensaram em reagir, mas não tinham como. Outros tentaram negociar com os censores. A edição do dia 14 noticiou as agruras da véspera. Novo ato; Congresso em recesso, era esta a manchete do Estado.

Nessa primeira fase, os censores permaneceram no jornal até 6 de janeiro de 1969. Depois se retiraram, para só voltar em agosto de 1972. Nesse intervalo, a censura prévia era feita por telefonemas, bilhetes e listas de assuntos proibidos. Os jornais acatavam essas imposições, mas não faziam autocensura. A ordem de Julio de Mesquita Neto no Estado e de Ruy Mesquita no Jornal da Tarde era trabalhar como se não houvesse restrições. Façam as reportagens e escrevam, os censores que cortem², era a orientação.

Como se recusavam a substituir matérias vetadas e os censores não admitiam que se deixasse espaço em branco, os jornais publicavam textos aleatórios para que o leitor entendesse o que estava ocorrendo. Cartas inventadas na Redação, comunicados jurídicos e notícias sobre criação de animais e cultivo de flores apareciam com destaque nas páginas nobres do Estado, no lugar de editoriais e reportagens que o lápis vermelho do censor havia riscado.

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Proibido de publicar a notícia da demissão do ministro da Agricultura, Cirne Lima, que havia entrado em choque com o ministro da Fazenda, Delfim Netto, a primeira página do Estado substituiu uma foto por uma peça publicitária da Rádio Eldorado, emissora do Grupo Estado. agora é samba, dizia o anúncio. Repetiu-se a dose no dia seguinte. No lugar de outra foto de Cirne Lima, uma ilustração com uma rosa branca e a legenda: ³A rosa, louvada por poetas desde tempos imemoriais, continua simbolizando o amor.

Na tentativa, sempre mais criativa, de deixar claro que o jornal estava sob censura, os editores publicavam também poesias no lugar do material cortado. O primeiro poema foi Y Juca Pirama, de Gonçalves Dias, que saiu em destaque na página dos editoriais, em 29 de junho de 1973. Castro Alves, Olavo Bilac, Manuel Bandeira e Cecília Meireles também colaboraram com seus versos para preencher o espaço aberto pela censura. Nem todos os leitores entenderam o recado. Muitos deles telefonaram ou escreveram para cumprimentar o Estado pelo apoio dado à literatura e ao cultivo de flores. Um grupo de senhoras procurou o prefeito Figueiredo Ferraz para sugerir que ele apoiasse a suposta campanha do jornal para florir a cidade.

Diante de tal reação, Julio de Mesquita Neto determinou que se publicasse alguma coisa constante e continuada, de modo que o leitor identificasse a censura. O redator Antônio Carvalho Mendes, responsável pelo seção de falecimentos, sugeriu que se publicassem versos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Aceita a sugestão, o poeta português apareceu 655 vezes no jornal. Segundo a pesquisadora Maria Aparecida Aquino, da Universidade de São Paulo, foram cortados 1.136 textos no Estado, de29 de março de 1973 a 3 de janeiro de 1975, quando acabou a censura.

No Jornal da Tarde, Ruy Mesquita mandou publicar receitas culinárias, de bolos e doces, em substituição às matérias cortadas. Muitos leitores não perceberam a manobra e telefonavam para reclamar, pois as receitas não davam certo. Não era para menos, pois elas saíam aos pedaços, incompletas, na medida exata do espaço censurado. Quando descobriram a brincadeira, leitores ligavam para perguntar o que havia sido proibido, como lembra o então editor Ari Schneider.

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A censura investia também contra jornalistas. Repórteres e correspondentes do Estado sofreram pressões e foram perseguidos por causa do seu trabalho. O chefe da sucursal de Recife, Carlos Garcia, foi preso e torturado em março de 1974, na véspera da posse do presidente Ernesto Geisel. Em outubro de 1975, Luiz Paulo Costa, correspondente em São José dos Campos, foi preso e torturado no DOI-Codi (departamento de operações e investigações do Exército), na mesma semana e no mesmo local em que o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado sob torturas. Oliveiros S. Ferreira, que como editor-chefe era o interlocutor do jornal com os responsáveis pela censura, teve de ir muita vezes à Polícia Federal e a uma unidade do Exército para explicar a publicação de temas proibidos.

O jornal deu toda a assistência a seus funcionários. Julio de Mesquita Neto e Ruy Mesquita assumiam a responsabilidade pelas reportagens publicadas e mandavam que, quando fossem questionados, os jornalistas dissessem que estavam cumprindo ordens deles. Isso ocorreu, por exemplo, em dezembro de 1972, quando o diretor da Sucursal de Brasília, Carlos Chagas, foi intimado a depor no Exército para revelar quem tinha feito uma matéria sobre denúncia de sequestro e tortura de um médico na capital. Chagas esclareceu que o material saiu de Brasília, mas que a publicação era de responsabilidade do diretor do jornal. Convocado, por precatória, a dar explicações na 2.ª Região Militar, em São Paulo, Julio de Mesquita Neto respondeu com ironia às perguntas do major que o interrogava.

No jornal, o senhor ocupa que cargo?, perguntou o oficial.

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Eu sou diretor do jornal, disse o jornalista.

Diretor responsável, não é, dr. Julio?

Não, responsável pelo jornal é o professor Alfredo Buzaid, ministro da Justiça. Porque o responsável pelo jornal decide o que sai e o que não. No caso, depois da censura, quem decide o que sai ou deixa de sair no Estado é o professor Alfredo Buzaid. Portanto, ele é que é o diretor responsável pelo jornal².

O advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira aconselhou o jornalista mudar a resposta, mas ele insistiu. ³Não, e só saio daqui se ficar constando o que eu disse.

Julio de Mesquita Neto e Oliveiros S. Ferreira denunciavam sistematicamente, em telegramas ao ministro da Justiça e aos líderes dos partidos do governo e da oposição no Congresso, a censura de discursos e documentos oficiais que tinham de ser substituídos por versos de Camões. No Jornal da Tarde, o diretor Ruy Mesquita também não deixava de protestar contra a arbitrariedade. Foi memorável, de extraordinária repercussão, um telegrama que ele mandou a Alfredo Buzaid em 19 de setembro de 1972, quando a Polícia Federal baixou novas normas de censura à imprensa. Dizia o texto:

³Senhor Ministro, ao tomar conhecimento dessas normas emanadas de V.Sa. o meu sentimento foi de profunda humilhação e vergonha. Senti vergonha, sr. Ministro, pelo Brasil, degradado à condição de uma republiqueta de banana ou de uma Uganda qualquer por um governo que acaba de perder a compostura...Todos os que estão hoje no poder dele baixarão um dia e então, sr. Ministro, como aconteceu na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini ou na Rússia de Stalin, o Brasil ficará sabendo a verdadeira história deste período em que a Revolução de 64 abandonou os rumos traçados pelo seu maior líder, o marechal Castello Branco, pra enveredar pelos rumos de um caudilhismo militar que já está fora de moda, inclusive nas repúblicas hispano-americanas...

As normas de censura que deixavam Ruy Mesquita humilhado, como ele disse ter ficado, proibiam críticas, comentários ou editoriais desfavoráveis sobre a situação econômico-financeira, ou problema sucessório e suas implicações, não importando de onde partissem. As ordens acima transmitidas atingem quaisquer pessoas, inclusive as que já foram Ministros de Estado ou ocuparam altas posições ou funções em quaisquer atividades públicas, dizia o comunicado da Polícia Federal. Era citada explicitamente a proibição de uma entrevista do economista Roberto Campos, ex-ministro do governo Castello Branco.

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O jornal enfrentou muita dificuldade para cobrir episódios como a morte de Carlos Marighella, a guerrilha e morte de Carlos Lamarca e os sequestros de diplomatas. Com acesso apenas às versões oficiais dos órgãos de segurança, os repórteres tinham de se arriscar ao recorrerem a outras fontes. No caso do sequestro do cônsul japonês Nobuo Okushi, em março de1970, em São Paulo, os sequestradores utilizaram o Estado como intermediário. Faziam suas exigências em cartas deixadas em caixas de correspondência e davam o endereço ao jornal.

Aviso o Exército e perco a carta ou pego a carta e o Exército fica bravo comigo? , pensou Oliveiros S. Ferreira. Mandou o repórter Luiz Roberto de Souza Queiroz buscar a carta e, 15 minutos depois, telefonou para um coronel. Há uma carta em tal endereço. Mandei pegar. Vamos ver quem chega primeiro. Assim foi ao longo dá. Há uo dia, pois as cartas continuaram chegando até à noite. Às vezes eu chegava primeiro, às vezes o Exército chegava. O editor-chefe tirava cópias das cartas antes de entregá-las aos militares. O Estado funcionou como um centro de distribuição para outros jornais e agências de notícias internacionais que ficaram sabendo e pediam cópias das cartas.

A censura acabou em 3 de janeiro de 1975, véspera da comemoração do centenário de O Estado de S. Paulo. Era o cumprimento de uma promessa que o general Ernesto Geisel fizera , ao assumir a Presidência da República, em março de 1974. Ao longo dos meses seguintes à sua posse, os censores permaneceram nas oficinas do jornal. Apesar da afirmação do ministro da Justiça, Armando Falcão, de que o governo retiraria logo as restrições, a repressão endureceu quando começou uma epidemia de meningite. Era proibido falar na doença, que fazia milhares de vítimas.

Apesar do levantamento da censura, as dificuldades continuaram nos anos seguintes, até o fim da vigência do AI-5, em dezembro de 1978. Um período particularmente difícil foram os últimos meses de 1975, quando o jornalista Vladimir Herzog foi assassinado nas dependências do DOI-Codi. A tensão político-militar que o governo enfrentou na época refletiu-se na imprensa, pois aumentaram as pressões, embora não houvesse mais versos de Camões e receitas culinárias nas páginas do Estado e do Jornal da Tarde.

Além de protestar junto às autoridades, o Estado recorreu aos tribunais contra a censura. A chance de levar a censura à Justiça veio com a queda de Cirne Lima, quando foi proibido publicar a carta de demissão do ministro da Agricultura, disse o advogado Manuel Alceu Affonso Ferreira, que entrou com a petição inicial em 15 de maio de 1973. Ele ganhou a causa em primeira instância três anos depois, mas enfrentou recursos e contestações até agosto de 1980, quando o Tribunal Federal de Recursos condenou definitivamente o governo a pagar a indenização.

Foi um valor quase simbólico, que seria de R$ 101.223,00 em julho de 2008 e que ainda não foi pago, levando-se em conta os danos materiais e morais sofridos pelo jornal, observou o advogado. De qualquer maneira, foi uma reparação moral, disse o juiz federal Luiz Rondon Teixeira de Magalhães, já falecido, que julgou procedente a ação, em março de 1976.

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