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Ex-guias localizam campo de execução de guerrilheiros

Clareira do Cabo Rosa, no Araguaia, é apontado como local onde soldados do Exército fuzilaram prisioneiros

Foto do author Leonencio Nossa
Por Leonencio Nossa e BREJO GRANDE DO ARAGUAIA
Atualização:

O mais simbólico dos campos de execução de guerrilheiros do Araguaia, a Clareira do Cabo Rosa foi localizada na tarde da última sexta-feira por dois ex-guias do Exército. Depois de um silêncio de mais de três décadas, José Francisco Pinto, o Zé da Rita, 70 anos, e José Maria Alves Pereira, o Zé Catingueiro, 72 anos, voltaram às matas onde militares fuzilaram uma boa parte dos 41 prisioneiros comunistas. A história da terceira campanha militar contra a guerrilha, entre outubro de 1973 e o final de 1974, começa a ser contada pela ótica dos principais mateiros do Exército. Liberados do pacto de silêncio feito com oficiais, os dois mateiros percorreram durante três dias os campos de fuzilamento. Uma parte da "floresta dos homens sem alma", como registrou o jornalista Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada, ainda está de pé e fica nas áreas das fazendas Rainha do Araguaia e Cabocla, a 28 quilômetros de estrada de terra do centro de Brejo Grande do Araguaia, uma cidade de dez mil habitantes no sul do Pará. A chegada à mata da Rainha do Araguaia exigiu um esforço de memória dos ex-guias, que ainda sofreram com os piuns, os mosquitos borrachudos da Amazônia, as formigas tocandiras e as áreas pantanosas. Nos anos 1980, os castanhais deram lugar aos bois. Há, porém, outros pontos de referência. "A floresta acaba. Mas os córregos e os grotões, mesmo com pouca água, e as montanhas continuam", disse Catingueiro. Foi por essas referências que ele e Zé da Rita chegaram a um morro onde possivelmente foram executados os guerrilheiros Antônio Teodoro de Castro, o Raul, Cilon Cunha Brum, o Simão, e Vandick Coqueiro, o João Goiano. Catingueiro é um homem falante e vaidoso. Usa chapéu, botas e camisa para dentro da calça e sempre abotoada. Ficou mais vaidoso ainda quando o general Mário Lúcio Alves de Araújo, que apoia o trabalho da associação, o presenteou com seu próprio coturno. Já o amigo com quem divide segredos do período da guerrilha costuma andar com um boné, sandálias de dedo e camisa para fora da calça. Zé da Rita anda com dificuldades desde o ano passado, quando sofreu um derrame que paralisou membros da parte esquerda do corpo. "Achar vestígios dos fuzilamentos virou uma questão de honra para eles", avaliou Paulo Fonteles Filho, ligado à Associação dos Torturados na Guerrilha do Araguaia, que junto com Sezostryz Alves da Costa organizou o retorno dos mateiros à área, para ajudar nas buscas de ossadas. Zé da Rita, que ganhou de Paulo uma bota, disse acreditar que o seu esforço em voltar às matas onde guiou e até chefiou patrulhas facilitará o andamento do processo deles de indenização e aproximá-los da comunidade. Como centenas de outros camponeses, eles sofreram violência nas bases militares instaladas na região. Catingueiro conta que teve a costela quebrada pelos pontapés de um oficial na base da Bacaba, que funcionava no Km 68 da Transamazônica, em São Domingos do Araguaia. "A gente não podia acompanhar guerrilheiro. E a gente não podia dizer não para o Exército", disse o mateiro. Durante a caminhada por pastos, capoeiras e matas ainda intactas, Catingueiro reclamou da "guerra". "Antes a gente entrava na mata para ajudar a matar. Hoje é por outro motivo. Mas está melhor. Os parentes desse pessoal da guerrilha podiam perseguir a gente. Eles podem agora nos acolher", disse. Sezostryz conta que a lógica de separar ex-guias de aliados da guerrilha, além de "injusta" e "preconceituosa", só ajuda a manter na condição de mistério a história da guerrilha. Ele relata as dificuldades que tem em Brasília para conseguir a reparação a homens miseráveis que sofreram nas mãos do Exército. "Nunca entendi isso tudo. Quem entende de tudo é o governo. Foi o governo quem fez a guerra", diz. "Se você tem um filho e manda ele trabalhar, ele tem de ir. Se o Exército mandar você ir, não tem outro jeito." OSVALDÃO Já no primeiro dia de caminhada, na quarta-feira, Zé da Rita, mais introspectivo que o colega, contou como um outro mateiro, Arlindo Piauí, falecido nos anos 1980, matou o guerrilheiro Osvaldo Orlando Costa, o Osvaldão, em 1973. Mesmo com o problema no braço esquerdo, Zé da Rita gesticulou como quem abre uma touceira, como fez Osvaldão, quando foi surpreendido pelo cano da arma de Piauí. O mais famoso integrante da guerrilha era um maltrapilho, sem forças e doente. O mateiro disparou contra o homem que teria prometido matá-lo por apoiar os militares. A caminhada dos mateiros continuou. Na sede da fazenda, o vaqueiro Ariosto Veloso de Andrade disse conhecer um local de cemitério clandestino, procurado por Zé da Rita. O lugar fica a dois quilômetros da sede, num trecho intocado de floresta. Depois de passar por um pasto e uma trilha aberta na mata, o ex-guia dá uma parada e indica com voz incisiva um local próximo ao córrego da Pulga, que deságua no rio Matrinxã, onde dois guerrilheiros teriam sido enterrados. Aqui também teria sido sepultado um garimpeiro ainda no período de exploração das minas de cristal, nos anos 1950 e 1960. No segundo dia, quinta-feira, Zé da Rita, Catingueiro e Ariosto abriram uma picada na mata para atingir uma parte elevada do terreno. Moradores dizem que foi enterrado nesta área o guerrilheiro Cilon da Cunha Brum, o Simão, um economista gaúcho executado aos 28 anos. Possivelmente, a mata também guarda os restos mortais de Antônio Teodoro de Castro, o Raul, executado quando tinha 29 anos, e Tobias Pereira Júnior, de 25 anos. Localizar os túmulos dos guerrilheiros não vai ser fácil. Nos morros ainda cobertos pela mata, há uma série de montes que podem ser, inclusive, sepulturas de pessoas anônimas vítimas de violência no período do Garimpo da Pulga. Na sexta-feira, os dois mateiros tentaram localizar a Clareira do Cabo Rosa, o mais simbólico campo de execuções no Araguaia. Zé da Rita e Catingueiro procuraram um antigo conhecido, o fazendeiro Antônio Costa Filho. O ex-dono da Fazenda Cabocla, onde fica a clareira, os levou até o local, uma área hoje desmatada, próxima a um córrego. "Quando eu comprei estas terras, o antigo dono me contou que aqui realmente era a Clareira do Cabo Rosa", disse o fazendeiro. Antônio disse que ele mesmo desmatou, em 1979, a mata em volta da clareira. Relatou ainda que nos anos 1980 um trator passou na área, fazendo modificações no terreno, o que torna muito difícil a busca de fragmentos de ossadas de guerrilheiros que podem ter sido enterrados no lugar.

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