'Erradicar a fome é um imperativo moral e político'

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Por Redação
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Desde que assumiu a presidência em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva participou três vezes da Assembléia Geral das Nações Unidas. Lula foi o quinto presidente brasileiro a discursar na ONU. Antes dele, somente os presidentes João Figueiredo, José Sarney, Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso haviam participado. O primeiro discurso foi proferido em 23 de setembro de 2003 na abertura da 58.ª Assembléia-Geral da ONU.   Leia abaixo a íntegra do primeiro discurso:   Que minhas primeiras palavras diante deste parlamento mundial sejam de confiança na capacidade humana de vencer desafios e evoluir para formas superiores de convivência no interior das nações e no plano internacional.   Em nome do povo brasileiro, reafirmo nossa crença nas Nações Unidas. Seu papel na promoção da paz e da justiça permanece insubstituível. Rendo homenagem ao secretário-geral, Kofi Annan, por sua liderança na defesa de um mundo irmanado pelo respeito ao direito internacional e à solidariedade entre as nações.      Esta Assembléia se instala sob o impacto do brutal atentado à missão da ONU em Bagdá que vitimou o alto comissário para Direitos Humanos, nosso compatriota Sérgio Vieira de Mello. A reconhecida competência de Sérgio nutria-se das únicas armas em que sempre acreditou: o diálogo, a persuasão, a atenção prioritária aos mais vulneráveis.   Exerceu, em nome das Nações Unidas, o humanismo tolerante, pacífico e corajoso que espelha a alma libertária do Brasil. Que o sacrifício de Sérgio e de seus colegas não seja em vão. A melhor forma de honrar sua memória é redobrar a defesa da dignidade humana onde quer que ela esteja ameaçada.   Saúdo fraternalmente o senhor Julian Hunte, que assume a presidência desta Assembléia em momento especialmente grave na história da ONU. A comunidade internacional está diante de enormes desafios políticos, econômicos e sociais, que exigem esforço acelerado de reforma da organização, para que nossas decisões e ações coletivas passem a ser de fato respeitadas e eficazes.       Senhoras e senhores,     Nestes nove meses como presidente do Brasil tenho dialogado com líderes de todos os continentes. Percebo nos meus interlocutores forte preocupação com a defesa e o fortalecimento do multilateralismo. O aperfeiçoamento do sistema multilateral é a contraparte necessária do convívio democrático no interior das nações. Toda nação comprometida com a democracia, no plano interno, deve zelar para que, também no plano externo, os processos decisórios sejam transparentes, legítimos, representativos.   As tragédias do Iraque e do Oriente Médio só encontrarão solução num quadro multilateral, em que a ONU tenha um papel central. No Iraque, o clima de insegurança e as tensões crescentes tornam ainda mais complexo o processo de reconstrução nacional. A superação desse impasse somente poderá ser assegurada a partir da liderança da ONU. Não apenas no restabelecimento de condições aceitáveis de segurança, mas também na condução do processo político, com vistas à restauração plena da soberania iraquiana no mais breve prazo.   Não podemos fugir a nossas responsabilidades coletivas. Pode-se talvez vencer uma guerra isoladamente. Mas não se pode construir a paz duradoura sem o concurso de todos.   Senhor presidente. Dois anos depois, ainda estão vivas em nossa memória as imagens do bárbaro atentado de 11 de setembro. Existe, hoje, louvável disposição de adotar formas mais efetivas de combate ao terrorismo, às armas de destruição em massa, ao crime organizado. Constata-se, no entanto, preocupante tendência de desacreditar a nossa organização e até mesmo de desinvestir a ONU de sua autoridade política.   Sobre esse ponto não deve haver qualquer ambigüidade. A ONU não foi concebida para remover os escombros dos conflitos que ela não pôde evitar - por mais valioso que seja o seu trabalho humanitário. Nossa tarefa central é preservar os povos do flagelo da guerra. Buscar soluções negociadas com base nos princípios da Carta de São Francisco. Não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da História e a luz da Razão.   A reforma da ONU tornou-se um imperativo, diante do risco de retrocesso no ordenamento político internacional. É preciso que o Conselho de Segurança esteja plenamente equipado para enfrentar crises e lidar com as ameaças à paz. Isso exige que seja dotado de instrumentos eficazes de ação.   É indispensável que as decisões deste Conselho gozem de legitimidade junto à comunidade de nações como um todo. Para isso, sua composição - em especial no que se refere aos membros permanentes - não pode ser a mesma de quando a ONU foi criada, há quase 60 anos. Não podemos ignorar as mudanças que se processaram no mundo, sobretudo a emergência de países em desenvolvimento como atores importantes no cenário internacional - muitas vezes exercendo papel crucial na busca de soluções pacíficas e equilibradas para os conflitos.   O Brasil está pronto a dar sua contribuição. Não para defender uma concepção exclusivista da segurança internacional. Mas para refletir as percepções e os anseios de um continente que hoje se distingue pela convivência harmoniosa e constitui um fator de estabilidade mundial. O apoio que temos recebido, na América do Sul e fora dela, nos estimula a persistir na defesa de um Conselho de Segurança adequado à realidade contemporânea.   É fundamental, igualmente, devolver ao Conselho Econômico e Social o papel que lhe foi atribuído pelos fundadores da Organização. Queremos um Ecosoc capaz de participar ativamente da construção de uma ordem econômica mundial mais justa. Um Ecosoc que, além disso, colabore com o Conselho de Segurança na prevenção de conflitos e nos processos de reconstrução nacional.   A Assembléia-Geral, por sua vez, precisa ser politicamente fortalecida para, sem dissipação de esforços, dedicar-se aos temas prioritários. A Assembléia-Geral tem cumprido papel relevante ao convocar as grandes conferências e outras reuniões sobre direitos humanos, meio ambiente, população, direitos da mulher, discriminação racial, aids, desenvolvimento social. Mas ela não deve hesitar em assumir suas responsabilidades na administração da paz e da segurança internacionais. A ONU já deu mostras de que há alternativas jurídicas e políticas para a paralisia do veto e as ações sem endosso multilateral. A paz, a segurança, o desenvolvimento e a justiça social são indissociáveis.   O Brasil tem se esforçado para praticar com coerência os princípios que defende. O novo relacionamento que estamos estabelecendo com os vizinhos do continente sul-americano baseia-se no respeito mútuo, na amizade e na cooperação. Estamos indo além das circunstâncias históricas e geográficas que compartilhamos para criar um inédito sentimento de parentesco e parceria. Neste contexto, nossa relação com a Argentina é fundamental.   A América do Sul afirma-se, cada vez mais, como região de paz, democracia e desenvolvimento, que pode, inclusive, ser uma nova fronteira de crescimento para a economia mundial, há anos estagnada. Além de aprofundar as relações já muito relevantes com nossos tradicionais parceiros da América do Norte e da Europa, buscamos ampliar e diversificar nossa presença internacional.   Nas parcerias com a China e com a Rússia estamos descobrindo novas complementaridades. Somos, com muito orgulho, o país com a segunda maior população negra do mundo. Em novembro, deverei visitar cinco países da África Austral, para dinamizar nossa cooperação econômica, política, social e cultural. Vamos também realizar um encontro de cúpula entre os países sul-americanos e os Estados que compõem a Liga Árabe. Com a Índia e a África do Sul estabelecemos um foro trilateral, orientado para a concertação política e projetos de interesse comum.     O protecionismo dos países ricos penaliza injustamente os produtores eficientes das nações em desenvolvimento. Além disso, é hoje o maior obstáculo para que o mundo possa ter uma nova época de progresso econômico e Social.   O Brasil e seus parceiros do G-22 sustentaram na reunião da OMC em Cancún que esta grave questão pode ser resolvida por meio da negociação pragmática e mutuamente respeitosa, que leve à efetiva abertura dos mercados. Reafirmo nossa disposição de buscar caminhos convergentes, que beneficiem a todos, levando em conta as necessidades dos países em desenvolvimento.   Somos favoráveis ao livre comércio, desde que tenhamos oportunidades iguais de competir. A liberalização deve ocorrer sem que os países sejam privados de sua capacidade de definir políticas nos campos industrial, tecnológico, social e ambiental.   No Brasil, estamos instaurando um novo modelo capaz de conjugar estabilidade econômica e inclusão social. As negociações comerciais não são um fim em si mesmo. Devem servir à promoção do desenvolvimento e à superação da pobreza. O comércio internacional deve ser um instrumento não só de criação, mas de distribuição de riqueza.   Reitero perante esta Assembléia verdadeiramente universal o apelo que dirigi aos Fóruns de Davos e Porto Alegre e à Cúpula Ampliada do G-8, em Evian. Precisamos engajar-nos - política e materialmente - na única guerra da qual sairemos todos vencedores: a guerra contra a fome e a miséria.   Erradicar a fome no mundo é um imperativo moral e político. E todos sabemos que é factível. Se houver - de fato - vontade política de realizá-lo.   Não me agrada repisar as evidências da barbárie. Prefiro sempre louvar progressos, por modestos que sejam. Mas não há como omitir os números que expõem a chaga terrível da miséria e da fome no mundo.   A fome hoje atinge um quarto da população mundial - incluindo 300 milhões de crianças. Diariamente, 24 mil pessoas são vitimadas por doenças decorrentes da desnutrição. Nada é tão absurdo e inaceitável quanto a persistência da fome em pleno século 21, a idade de ouro da ciência e da tecnologia.    A cada dia a inteligência humana amplia o horizonte do possível, realizando prodigiosas invenções. E, no entanto, a fome continua e, o que é mais grave, se alastra em várias regiões do planeta. Quanto mais a humanidade parece aproximar-se de Deus pela capacidade de criar, mais o renega pela incapacidade de respeitar e proteger suas criaturas. Quanto mais o celebramos ao gerar riquezas, mais o ferimos por não saber, minimamente, reparti-las.   De que vale toda essa genialidade científica e tecnológica, toda a abundância e o luxo que ela é capaz de produzir, se não a utilizamos para garantir o mais sagrado dos direitos: o direito à vida?  Recordo a lúcida advertência de Paulo VI, feita 36 anos atrás, mas de desconcertante atualidade: ‘Os povos da fome dirigem-se hoje, de modo dramático, aos povos da opulência.’ A fome é uma emergência e como tal deve ser tratada. Sua erradicação é uma tarefa civilizatória, que exige um atalho para o futuro. Vamos agir para acabar com a fome ou imolar nossa credibilidade na omissão?   Não temos mais o direito de dizer que não estávamos em casa quando bateram à nossa porta e pediram solidariedade. Não temos o direito de dizer aos famintos que já esperaram tanto: passem no próximo século.   O verdadeiro caminho da paz é o combate sem tréguas à fome e à miséria, numa formidável campanha de solidariedade capaz de unir o planeta em vez de aprofundar as divisões e o ódio que conflagram os povos e semeiam o terror. Apesar do fracasso dos modelos que privilegiam a geração de riqueza sem reduzir a miséria, a miopia e o egoísmo de muitos ainda persistem. Desde 1.º de janeiro, logramos no Brasil avanços significativos em nossa economia.   Recuperamos a estabilidade e criamos as condições para um novo ciclo de crescimento sustentado. Continuaremos a trabalhar com vigor para manter o equilíbrio das contas públicas e reduzir a vulnerabilidade externa. Não mediremos esforços para aumentar as exportações, ampliar a capacidade de poupança, atrair investimentos e voltar a crescer. Mas devemos ser capazes, ao mesmo tempo, de atender às necessidades de alimentação, emprego, educação e saúde de dezenas de milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza.   Temos o compromisso de realizar uma grande reforma social no País. A fome é o aspecto mais dramático e urgente de uma situação de desequilíbrio estrutural, cuja correção requer políticas integradas para a promoção da cidadania plena. Por isso, lancei no Brasil o projeto Fome Zero, que visa - por meio de um grande movimento de solidariedade e de um programa abrangente envolvendo o governo, a sociedade civil e o setor privado - a eliminar a fome e suas causas.   O programa conjuga medidas estruturais e emergenciais e já atende 4 milhões de pessoas que não tinham sequer o direito de comer todos os dias. Nossa meta é que até o final de meu governo nenhum brasileiro passe fome.   Senhor presidente. As Nações Unidas aprovaram as Metas do Milênio. A FAO possui notável experiência técnica e social. Mas precisamos dar um salto de qualidade no esforço mundial de luta contra a fome. Propus, nesse sentido, a criação de um Fundo Mundial de Combate à Fome e sugeri formas de viabilizá-lo.   Existem outras propostas, algumas já incorporadas a programas das Nações Unidas. O que faltou até agora foi a imprescindível vontade política de todos nós, especialmente daqueles países que mais poderiam contribuir. De nada servem os fundos se ninguém aporta recursos. As Metas do Milênio são louváveis mas, se continuarmos omissos, se nosso comportamento coletivo não mudar, permanecerão no papel - e a frustração será imensa.   É preciso, mais do que nunca, transformar intenção em gesto. É preciso praticar o que pregamos. Com audácia e bom senso. Com ousadia e pés no chão.   Inovando no conteúdo e na forma. Adotando métodos e soluções novas, com intensa participação social. Por isso, submeto à consideração dessa Assembléia a hipótese de criar, no âmbito da própria ONU, um Comitê Mundial de Combate à Fome, integrado por chefes de Estado ou de governo de todos os continentes, com o fim de unificar propostas e torná-las operativas.   Esperamos motivar contribuições financeiras de países desenvolvidos e em desenvolvimento, de acordo com as possibilidades de cada um, bem como de grandes empresas privadas e organizações não-governamentais.   Senhor presidente.   Minha experiência de vida e minha trajetória política ensinaram-me a acreditar acima de tudo na força do diálogo. Nunca me esquecerei da lição insuperável de Ghandi: ‘A violência, quando parece produzir o bem, é um bem temporário; enquanto o mal que faz é permanente.’   O diálogo democrático é o mais eficaz de todos os instrumentos de mudança. A mesma determinação que meus companheiros e eu estamos empregando para tornar a sociedade brasileira mais justa e humana, empregarei na busca de parcerias internacionais com vistas a um desenvolvimento equânime e a um mundo pacífico, tolerante e solidário.   Este século, tão promissor do ponto de vista tecnológico e material, não pode cair em um processo de regressão política e espiritual. Temos a obrigação de construir, sob a liderança fortalecida das Nações Unidas, um ambiente internacional de paz e concórdia.   A verdadeira paz brotará da democracia, do respeito ao direito internacional, do desmantelamento dos arsenais mortíferos e, sobretudo, da erradicação definitiva da fome.   Senhor presidente, chefes de Estado e de governo. Não podemos frustrar tanta esperança. O maior desafio da humanidade - e, ao mesmo tempo, o mais belo - é justamente este: humanizar-se.   É hora de chamar a paz pelo seu nome próprio: justiça social. Tenho certeza de que, juntos, saberemos colher a oportunidade histórica da justiça. Muito obrigado" ‘O comércio internacional deve ser um instrumento não só de criação, mas de distribuição de riqueza'      

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