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Encapsulado no verão 90, Bolsonaro celebra golpe de 64

Obsessão regressista leva o governo a turbinar comemorações da derrubada de João Goulart

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Por Wilson Tosta
Atualização:

Caro leitor,

Quando o capitão Jair Messias Bolsonaro trocou a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército pela política, em 1988, o mundo se despedia da Guerra Fria. Uma década antes, o líder chinês Deng Xiaoping dissera que “não importava a cor do gato, mas que caçasse o rato”. Rompia dogmas da esquerda até então intocados e abria espaço para o posterior boom que projetou a China como potência econômica global.

O presidente Jair Bolsonaro Foto: Isac Nóbrega/Planalto

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Em 1989, a Queda do Muro de Berlim iniciou a derrocada do comunismo. O processo, em 1991, dissolveria a URSS e acabaria oficialmente com a bipolaridade nas relações internacionais.

Trinta e um anos depois, porém, Bolsonaro parece congelado na era que precedeu tantas mudanças. Veja aqui como empenha-se em uma “guerra ideológica” espectral, que mobiliza seus partidários mais radicais e disputa espaço nas redes sociais com notícias falsas, campanhas antivacinais e terraplanismo.

Trata-se de uma espécie de recidiva do Verão 90. Com esse nome, uma novela da Rede Globo evoca, com alguma saudade, o tempo do Brasil da hiperinflação, quando ainda existia União Soviética, e a China era só uma promessa.

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Viver refugiado em uma espécie de  bolha imaginária do espaço-tempo, onde o Muro de Berlim continua de pé e as festas ainda são animadas pela voz de Donna Summer, poderia ser reconfortante e até divertido para um cidadão comum. Se o inquilino da fantasia ocupa o Palácio do Planalto, tem-se um problema.

O presidente, que na campanha prometeu fazer o Brasil voltar 50 anos, já tinha dado uma amostra desse espírito regressista no aniversário de 211 anos do Corpo de Fuzileiros Navais, no início de março. Disse em discurso que a democracia e a liberdade só existem quando as Forças Armadas permitem. Noticiamos aqui.

Teve uma recaída ao ordenar aos fardados que façam, no aniversário da queda de João Goulart, as “comemorações devidas”. Oficiais-generais, logo eles, pediram cautela, atentos à polarização política inédita em nossa história. Leia nesta reportagem.

Afinal, os tempos são outros. É difícil que nessas celebrações haja discursos como os do passado, quando as ordens do dia eram marcadas por advertências contra o “comunismo solerte”. Hoje, não há mais comunismo como corrente política relevante, e a democracia se consolidou no Brasil.

Bolsonaro, contudo, parece não ter notado essas mudanças e cria constrangimento para o Brasil ao elogiar não só a ditadura brasileira, mas aquelas que atingiram países vizinhos, como assinalou o Estadão em editorial. Na recente visita ao Chile, sua memória idílica do sinistro regime do general Augusto Pinochet, considerado entre os chilenos um ditador sanguinário e repulsivo, responsável por 3 mil assassinatos, causou problemas ao presidente Sebastián Piñera.

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Não ajudaram tampouco as declarações do ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil), que exaltou, como método para reformas, o “banho de sangue” promovido por Pinochet. O timing não poderia ser pior: elas foram dadas quando a proposta para a Previdência começava a tramitar, em meio a considerável tumulto.

No Ministério da Educação, o entusiasmo ideológico estimulado por Bolsonaro, que desde a campanha ataca o suposto marxismo que domina o setor e chegou a falar em uma “Lava Jato da Educação”, teve consequências mais nocivas. Quase três meses após a posse do ministro Ricardo Vélez Rodriguez, inicialmente um apadrinhado do autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, o MEC continua solidamente parado. O órgão está dividido entre olavistas, técnicos e militares, que se engalfinham pelo seu controle.

Durante audiência na Câmara dos Deputados, o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, foi duramente criticado por parlamentares que consideraram as respostas vagas e pela falta de clareza na apresentação de programas da pasta Foto: Dida Sampaio/Estadão

Em meio a esse confronto, surgiu a mais vistosa das crises do MEC. O ministro enviou para escolas de todo o País um email recomendando que as crianças fossem perfiladas para cantar o Hino Nacional e filmadas enquanto o fizessem. Deveria ainda ser lida uma carta de Rodríguez, encerrada com  o lema de campanha do presidente, como você leu primeiro no Blog de Renata Cafardo.

O curto circuito gerado pela mensagem, tão absurda que inicialmente foi considerada fake news, gerou um expurgo no ministério, com demissões e remanejamentos de cargo dos olavistas, apontados como responsáveis pelo disparate. O grupo  é formado por jovens egressos dos “cursos” que Olavo ministra via internet. Os garotos são fechados em um ultraconservadorismo heterodoxo, marcado por conceitos obscuros, como “marxismo cultural” e “globalismo”, que lembram a (inexistente) conspiração judaica internacional, que inspirou as extremas direitas europeias no início do Século 20.

Apesar dos expurgos, o clima de disputa ideológica pela agenda do MEC continuou, com novas medidas polêmicas. Como foi a criação de uma curiosa comissão para fazer o patrulhamento ideológico do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O resultado foi um ministro proibido de contratar auxiliares, que, após uma sucessão de mudanças e recuos, reconheceu que seu cargo é um “abacaxi”, mas negou que pretenda renunciar.

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No mesmo 1988 em que Bolsonaro  começou na política eleitoral, o poeta Cazuza pediu uma ideologia para viver. O hoje presidente parece tê-la encontrado e trazido para o Planalto, onde o combate ideológico é prioridade, não importa quantos ratos driblem os gatos.

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