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Em CPI, Nise revela preocupação com mudança em bula da cloroquina: 'Exporia muito o presidente'

Médica oncologista entregou à comissão um documento comprovando que mudança foi sugerida ao presidente Jair Bolsonaro

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BRASÍLIA - Em depoimento à CPI da Covid, a médica oncologista Nise Yamaguchi negou, nesta terça-feira, 1º, a intenção de mudar a bula da cloroquina para incluir o tratamento contra coronavírus entre as finalidades do medicamento. Mesmo assim, ela entregou à CPI um documento comprovando que a ideia foi sugerida ao presidente Jair Bolsonaro.

Na mensagem trocada com o médico Luciano Dias Azevedo por WhatsApp, no dia 6 de abril de 2020, Nise escreveu: "Oi, Luciano. Este decreto não pode ser feito assim, porque não é assim que regulamenta a pesquisa clínica. Tem normas próprias. Exporia muito o presidente".

A médica Nise Yamaguchi presta depoimento àCPI da Covid Foto: GABRIELA BILÓ / ESTADÃO

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A ideia sugerida por Nise previa que médico e paciente concordassem com uma "adesão ao uso experimental das medicações descritas na doença covid-19 no intuito de tratar e iniciar protocolos de pesquisas clínicas"

Embora o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e o atual presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres, tenham narrado à CPI, recentemente, que houve tentativa de alterar a bula da cloroquina para indicar o remédio no tratamento de covid-19, Nise negou ter feito essa sugestão.

Senador pergunta a Nise diferença entre vírus e protozoário

O senador Otto Alencar (PSD-BA), que é médico, perguntou a Nize se ela sabia a diferença entre vírus e protozoário, que é o microorganismo causador da malária. A cloroquina é indicada para o tratamento de malária, artrite rematóide e lúpus.

"Protozoários são organismos celulares e vírus são organismos que têm o conteúdo de DNA ou RNA", respondeu ela. Alencar rebateu: "A senhora não é infectologista, se transformou de uma hora para outra, como muitos no Brasil se transformaram em infectologistas, e não é assim. Os protozoários são organismos mono ou unicelulares e os vírus são organismos que têm uma proteção proteica de capsídeo e internamente o ácido nucleico".

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O senador voltou ao ataque. “É completamente diferente do que a senhora falou. A senhora não soube explicar o que é um vírus. Vírus não são nem considerados seres vivos. Portanto, uma medicação para protozoário nunca cabe para vírus."

Alencar também perguntou se Nise sabia qual tinha sido a primeira aparição da covid no mundo. Como ela revirava os papéis em cima da mesa para responder, o senador interrompeu: “Pode buscar nos livros que a senhora tem aí porque a senhora não sabe. Não estudou. De médicos audiovisuais este plenário está cheio”.

Irritado, o senador questionou Nise sobre a qual grupo pertencia a covid-19. “Ao coronaviridae. Ele é um coronavírus”, disse a médica. “A senhora não sabe nada de infectologia. Nem estudou, doutora. A senhora foi aleatória mesmo, superficial. A covid-19 é da família dos betacoronavírus”, afirmou Alencar.

Diante dos senadores, Nise confirmou que esteve em uma reunião convocada pela Casa Civil, no ano passado, para tratar sobre uso de medicamentos para a covid-19. “Tinha muita gente na sala e conversamos sobre uma resolução da Anvisa que falava sobre inclusão de nova medicação terapêutica para covid e também (sobre) uma nota do Ministério da Saúde. A minuta jamais falava de bula, mas sobre a possibilidade de haver uma disponibilização de medicamentos”, relatou.  

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Nise disse que se estava discutindo ali a “inclusão do uso do medicamento”, e não de mudança de bula. “Esse papel que estava em cima da mesa só falava sobre dispensa de medicamentos. Sou especialista em regulação, isso jamais aconteceria.”O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), sugeriu uma acareação entre Nise e Barra Torres para esclarecer as diferenças entre os depoimentos.   

De acordo com a médica, Bolsonaro trouxe a ela informações sobre o chamado tratamento precoce, em uma reunião que ocorreu no começo da pandemia, em abril de 2020. “Eu tive a oportunidade, no início, de receber dele a informação de que existia um tratamento que estava sendo discutido na França. Eu já tinha a informação prévia, e ele me falou nessa reunião que existia", declarou.   

A médica disse que, nesse encontro com Bolsonaro, explicou que eram necessários mais dados científicos. Ela contou à CPI ter dito na reunião que iria conversar com o Conselho Federal de Medicina para validar a possibilidade de médicos prescreverem e os pacientes receberem cloroquina.   

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Na época, um estudo conduzido pelo médico francês Didier Raoult indicava a hidroxicloroquina no tratamento. A pesquisa foi questionada pelos pares e por entidades médicas do país por causa da metodologia usada pelo médico e pelo número reduzido de pacientes incluídos no estudo. Raoult publicou carta no site do Centro Nacional de Informações sobre Biotecnologia da França na qual admitiu que o medicamento não reduz a mortalidade.

Tratamento precoce

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Nise Yamaguchi  apresentou informações falsas sobre o chamado tratamento precoce contra o coronavírus. Ivermectina e azitromicina, por exemplo, são alguns dos fármacos que fazem parte da combinação de medicamentos usados para a profilaxia ou tratamento precoce da  doença, mesmo sem existir comprovação científica sobre os benefícios aos pacientes.

Seguindo uma estratégia de veicular declarações antigas dos depoentes para expor à CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da comissão, repetiu por três vezes uma gravação na qual a oncologista diz que “tratamento precoce salva vidas” e que, por isso, “não é preciso vacinar a população aleatoriamente porque há tratamento precoce para covid-19”.

Questionada pelos senadores, Nise tergiversou, mas acabou afirmando que mantinha o que havia dito. “Eu disse que vacina não é tratamento, vacina é prevenção. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”, insistiu. 

A posição da oncologista levou o presidente da CPI a pedir para que as pessoas não levassem em consideração declarações da médica, sugerindo que a vacinação total não seria necessária e urgente.  

“Não escutem o que ela está dizendo. Todos os brasileiros precisam de duas vacinas. Quem está nos vendo, neste momento, não acreditem nela. Tem que vacinar. A vacina salva, tratamento precoce não salva”, afirmou Omar Aziz.

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A intervenção do presidente da CPI provocou bate-boca entre os senadores e fez com que alguns deles pedissem a Aziz que suspendesse o depoimento para que Nise pudesse voltar outro dia como “convocada”, e não “convidada”. Na condição de convocada, a médica teria de jurar dizer somente a verdade.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), suplente da comissão, foi um dos que fizeram o pedido para que a médica prestasse novo depoimento, mas como convocada.

"A estratégia da Doutora Nise fica clara, tentando transformar sua fala em palestra científica. Não é. E também não estamos falando de autonomia do médico no trato com o paciente. Estamos falando sobre políticas públicas executadas sem base científica concreta. E já são 462.966 mortos", disse Vieira mais tarde, no Twitter.

Gabinete paralelo

Para Renan Calheiros, o depoimento de Nise "confirma a existência do gabinete paralelo" ao Ministério da Saúde no aconselhamento presidencial sobre covid.

"Esteve com Arthur Weintraub em reuniões na Presidência, em cerimônias e, inclusive, em evento denominado 'Médicos para a Vida', aquele que discutiu possibilidades e estratégias para se viabilizar e distribuir medicamentos para tratamento precoce. Também participou de diversas reuniões no Ministério da Saúde", escreveu o senador do MDB em suas considerações sobre as afirmações da médica.

O relator da CPI disse, ainda, que Nise fez “falsas declarações” sobre nunca ter se reunido sozinha com Bolsonaro e sobre não participar de reuniões do governo sobre vacinas.

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Em nota, o grupo “Médicos pela Vida” repudiou “veementemente” a postura de senadores no depoimento prestado por Nise. “Mais uma vez, senadores totalmente despreparados e com objetivos eminentemente partidários e eleitoreiros perderam uma grande oportunidade de produzir ao Brasil e aos brasileiros perspectivas efetivas de políticas públicas para a reversão do quadro da pandemia no País”, diz nota assinada por “Médicos pela Vida”.

O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), perguntou à médica se ela conhecia o empresário Carlos Wizard. Ela respondeu afirmativamente e disse que Wizard tinha "interesse real" no assunto, ajudando a formar, como empreendedor social, um conselho científico voluntário. Pelas contas de Nise, esse conselhojá conta, atualmente, com 10 mil médicos voluntários no País.

A médica observou que Bolsonaro e o ex-assessor especial da Presidência Arthur Weintraub receberam os especialistas desse grupo. "A gente discutiu a formação do conselho científico independente, sem ter vínculo com o Ministério da Saúde, sem vínculo oficial", declarou ela, negando que se tratasse de um “gabinete paralelo”. O papel de Weintraub, irmão do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, teria sido o de "unir dados". Na reunião citada, o tema tratado foi a importância do tratamento precoce. “Esses 10 mil médicos já existiam mobilizados no Brasil. Eles trabalham de forma totalmente voluntária”, insistiu Nize.  

Correções

Diferentemente do que inicialmente foi informado no texto, a médica Nise Yamaguchi não é infectologista. Ela possui especializações em oncologia e imunologia.

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