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''É uma luta que não acaba nunca''

Para Serra, que amargou o exílio, os jovens entendem o significado da ditadura quando a comparam com o regime democrático

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Por Redação
Atualização:

O governador José Serra entende que a melhor explicação que alguém pode dar aos jovens sobre o significado da ditadura é mostrar como ela era. "É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia", disse ele. Serra opinou que a busca pelo aperfeiçoamento da democracia "é uma luta que não acaba nunca". Eis a entrevista: O senhor estava no Chile no dia 13 de dezembro de 1968. Como entendeu a notícia da edição do AI-5, na ocasião? Pelas informações que recebia do Brasil, eu já estava aguardando um endurecimento do regime. Soube da notícia pela Conceição Tavares, quando estava de cama, com febre tifóide, uma infecção cuja incidência era relativamente alta na região de Santiago. Na época, minha mulher estava grávida, eu tinha acabado o curso de pós-graduação em Economia e havia sido contratado pela universidade. Eu não sou da "geração de 1968". Havia deixado o Brasil em 1964, depois do golpe. Era presidente da UNE e nas semanas que sucederam o golpe fui bastante procurado pelos órgãos de repressão. Sem condições de permanecer em liberdade, passei pela Bolívia e fui para a França, onde contava com uma bolsa para estudar Economia, embora fosse aluno de Engenharia, na Politécnica de São Paulo. Voltei ao Brasil em 1965, clandestino, mas não houve condições de permanecer. Fui então para o Chile, com o propósito de terminar meus estudos. Em 1966, fui condenado pela Justiça Militar, num processo inteiramente inventado. Por isso, havia perdido quase toda as esperanças de regressar ao Brasil, no curto prazo, para uma vida normal, aberta. O AI-5 eliminou esse "quase". Aliás, acabei tendo uma recaída da febre tifóide, o que é raríssimo. A probabilidade, segundo os médicos, era de 1%. Quem sabe foi uma somatização do AI-5. E como o senhor o vê hoje? Quarenta anos depois o vejo como o pior episódio da história brasileira do pós-guerra. Senti que iria se abater sobre as forças da esquerda, em todas suas variantes, uma repressão para valer. Seria a ditadura de verdade, sem passeatas nem canções de protesto. Não acreditava na solidez de uma reação armada. Fiquei no Chile até 1974, já com dois filhos. Lá, sofri a repressão que não chegou a me atingir no Brasil, pois fui preso depois do golpe e, creio, por pouco e por muita sorte, não entrei numa lista de "desaparecidos". Aprendi muito, muitíssimo, com dois golpes e dois exílios nas costas. Sobretudo, a nunca subestimar os valores da democracia, a importância de obedecer as regras desse regime e, também, das políticas públicas responsáveis. A seu ver, que país saiu dessa experiência? Um país mais complicado, mais difícil. Só nos livramos do AI-5 em 1979, e do regime autoritário, em 1985. O preço foi alto. A Nova República teve de se defrontar com enormes expectativas de liberdade e de solução rápida dos problemas de desigualdade, num Estado relativamente desorganizado. Entre as forças que vinham da esquerda, prevalecia, e isto aconteceu até o PT vencer as eleições presidenciais, a idéia de que mudança gradual é enganação, o que valia era a "ruptura", e que o governo estava sempre do lado errado. A ditadura que começou em 1964 e se materializou completamente em 1968 frustrou também a renovação política da sociedade brasileira. Grande parte do que havia de melhor na minha geração e nas seguintes ou ficou à margem da política ou não aprendeu a fazer a política democrática. Qual o peso da resistência ao regime na construção de lideranças que hoje ocupam cargos importantes da administração pública do País? Para algumas lideranças, a resistência contribuiu para firmar convicções mais realistas e solidamente democráticas. Para outras, não. O senhor foi militante da Ação Popular (AP). Como viu, do exílio, a opção que a AP depois fez pela luta armada? A AP, como tal, não chegou a entrar na luta armada, a praticar a luta armada. Eu acompanhei o processo a distância, pois não estava no Brasil e tive pouca influência direta nos rumos da AP. Depois de 1964, a AP optou pelo marxismo-leninismo, seja lá o que isso puder significar hoje em dia. Depois se desenvolveu uma vertente forte, maoísta. Mas o partido acabou se dividindo, com os maoístas indo para o PC do B, que efetivamente tentou fazer a luta armada no Araguaia. Os que ficaram com a AP, apesar de não se organizarem militarmente, foram sendo rapidamente dizimados, muitos sob as piores torturas, como Paulo Wright, para quem escrevi mais de uma vez insistindo para que saísse do Brasil, pois acabaria sendo morto. Ele e muitos outros. O que o senhor pensava da luta armada? Desde que deixei o Brasil, em 1964, eu era cético sobre as possibilidades de um enfrentamento armado do regime, seja no esquema do foco guerrilheiro, o "foquismo", que procurava replicar a revolução cubana, seja no esquema da guerra popular maoísta, do campo para as cidades. O texto clássico do foquismo foi do Régis Debray, intitulado Le Castrisme, la Longue Marche de l?Amérique Latine, publicado no Les Temps Modernes, revista do Sartre, que eu lia na França, quando lá estava. Não me seduziu nem intelectual nem politicamente. No Brasil, no final dos anos 60, o texto mais influente sobre o foquismo era de um militante da Var-Palmares ou da VPR, com o cognome de Jamil (Ladislau Dowbor). Como explicaria aquele período aos jovens que não conheceram a ditadura? Não é fácil explicar, mas basta descrever. A melhor explicação possível sobre o que significou a ditadura é mostrar como eram coisas quando ela prevalecia. É compará-la com o regime democrático, até para que a juventude possa valorizar melhor a democracia. E, tanto quanto isso, se prepare para lutar pela democracia. É uma luta que não acaba nunca.

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