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É tempo de CPI; cada um cuide de si

Defesa do bolsonarismo feita por Braga Netto é criticada por militares na véspera do depoimento de Pazuello na CPI

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Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor, 

general Braga Netto chegara aos 60 anos candidato a uma reforma tranquila. Fora, no entanto, incluído em uma empresa – o governo de Jair Bolsonaro – para a qual não havia remédio. As desventuras do general lembram a figura do coronel Tamarindo, aquele de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Tamarindo substituiu o coronel Moreira César, depois de o comandante da expedição contra Canudos ser alvejado no abdome pela bala de um jagunço do Conselheiro enquanto a tropa varejava e ateava fogo às casas, formando escombros e esconderijos formidáveis para os sertanejos.

General Walter Braga Netto, ministro daDefesa, foi questionado por outros ministros do governo sobre suposto uso de avião da FAB pelo guru bolsonarista Olavo de Carvalho. Foto: Ricardo Moraes/Reuters

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Tamarindo, escreveu Euclides, "não suportava as responsabilidades, que o oprimiam". "Maldizia talvez, mentalmente, o destino extravagante que o tornara herdeiro forçado de uma catástrofe. Não deliberava. A um oficial, que ansiosamente o interpelara sobre aquele transe, respondera com humorismo triste, rimando um dito popular do Norte: 'É tempo de murici, cada um cuide de si'." Braga Netto chegou ao governo. Logo recebeu duas missões: assumir o comitê de combate à covid-19 e assinar a demissão do delegado Maurício Valeixo, da direção da PF.

Do combate à doença pouco se viu. A não ser que os militares do Planalto esperassem derrotar o vírus “pela manobra”. Ou pensavam que um lance de dados – a cloroquina para todos, a ignorância e sabotagem das vacinas e a espera da imunidade de rebanho que mataria os fracos, preservando os fortes – fosse suficiente para enfrentar a doença mortal. Tal qual a expedição de Moreira César a Canudos, a tropa de Braga Netto foi derrotada por um adversário que parecia invisível. 

Antes, em 15 de maio de 2020, Braga Netto sacou para os jornalistas um gráfico sobre a covid-19 no mundo. Era uma das peças usadas pelos bolsonaristas no WhatsApp para minimizar a pandemia no País. Com o cálculo de mortes por cem mil habitantes, comparava os dados do Brasil com os de países com índice pior e, assim, dizia que a imprensa espalhava o pânico no País. O Brasil tinha então 15 mil mortes pela doença e o governo e seus militares se preocupavam mais com a reeleição do que com as vidas. Um ano depois, 434,8 mil delas foram ceifadas. E ainda há general que acredita nos efeitos da cloroquina ou na ivermectina...

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Há quem lembre que os discípulos do general Maurice Gamelin defendiam a Linha Maginot enquanto os alemães faziam a festa em Paris. O outro combate prometido, aquele que elegia a corrupção como inimigo, recebeu de Braga Netto uma assinatura indelével. A história registra no ato de demissão do delegado Valeixo – ato denunciado como falso por Sérgio Moro – a assinatura do general de quatro estrelas no lugar daquela do ministro demissionário. Um dia antes, ele desmentira a notícia da saída de Moro. 

Faltar com a verdade ainda é a primeira das transgressões disciplinares entre os militares. Foi em razão dela que o ministro do Exército Leônidas Pires Gonçalves escreveu o documento "A verdade: um símbolo da honra militar", quando uma investigação concluiu que dois capitães mentiram aos seus superiores sobre um plano de colocar bombas em quartéis. Um dos atingidos pelo decisão de homologar o Conselho de Justificação ocupa hoje a Presidência da República. "Não se pode admitir a desonra e a deslealdade que do lado inimigo, jamais do lado amigo”. Eis a lição do general Leônidas.

Centenas de apoiadores de Bolsonaro participam de atona Esplanada dos Ministérios Foto: Gabriela Biló/Estadão

Mas ela não se aplica aos políticos. Um ano depois do gráfico sobre a covid, Braga Netto foi com seus colegas ministros à passeata golpista organizada pelo presidente, na qual seus seguidores diziam autorizá-lo a intervir nos demais Poderes e usar as Forças Armadas contra governadores e prefeitos. Essa bolsonarice passaria despercebida pelos militares se a ela não tivesse comparecido o ministro da Defesa, cargo que Braga Netto exerce após o antigo titular da pasta, Fernando Azevedo e Silva, ser alvejado por Bolsonaro

Ao prestigiar como ministro da Defesa a manifestação golpista, Braga Netto devia ouvir as palavras do general Francisco Mamede de Brito. "Infelizmente, o referido 'projeto escolhido pela maioria', há muito tempo, foi abandonado. Sequer existiu, na prática. A desconstrução da Lava Jato, o caso Queiroz e as negociatas com o Centrão são provas cabais." Alguns poucos milhares de fazendeiros, pastores, familiares de militares e assessores do governo saíram às ruas no dia 15 para apoiar um presidente cada vez mais impopular. Tão impopular que quase ninguém notou a presença do general no evento golpista.

Ninguém consegue mobilizar a população para proteger os bolsos forrados de uma centena de militares que passaram a ganhar acima do teto de R$ 39,2 mil, ou para impedir que Flávio Bolsonaro, o filho rico do salvador da Pátria, seja investigado pela Justiça, ou ainda para proteger os R$ 3 bilhões do orçamento secreto do Centrão. É nesse ambiente que o nome de Braga Netto surge na CPI da Covid como o homem da reunião em que se tratou da mudança da bula da cloroquina. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) apresentou requerimento para convocá-lo. Braga Netto pode ser ouvido após o general e ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello.

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A ida de militares à Câmara para depor sobre escândalos políticos é ato raro, mesmo em democracias como nos Estados Unidos. Em 1987, o tenente-coronel Oliver North compareceu fardado e cheio de condecorações para fazer o papel de patriota cumpridor de ordens diante do Congresso. Havia se envolvido com a venda de armas para o Irã e o desvio dos lucros para abastecer os contras da Nicarágua. Pazuello devia seguir o exemplo de North e comparecer uniformizado?

Euclides da Cunha, autor de Os Sertões Foto: Arquivo Estadão

É assim que alguns militares gostariam de vê-lo no Congresso. Uns porque o apoiam e acreditam que a farda galvanizaria o apoio dos demais camaradas. Outros porque desejam expor a impostura dos que foram exercer cargos civis no governo sem a oposição de seus comandantes. A exemplo do coronel americano, Pazuello é militar da ativa e a tradição manda comparecer fardado a atos judiciários – e a CPI é uma investigação contra a qual cabe até habeas corpus. Pobre Pazuello. Se fosse hoje pedir um conselho ao seu chefe, talvez, ouvisse uma versão renovada da boutade do coronel Tamarindo: ‘É tempo de CPI; cada um cuide de si’.

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