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‘É preciso evitar confusão entre política e Justiça’, diz ex-juiz da Suprema Corte da Itália

Integrante da Operação Mãos Limpas, Gherardo Colombo defende quarentena para juiz ocupar cargo público

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Por Marcelo Godoy
Atualização:
Gherardo Colombo, ex-ministro da Corte de Cassação no período da Operação Mãos Limpas Foto: Felipe Rau/Estadão

Parem de comparar a Operação Lava Jato com a Mãos Limpas. Este é o pedido feito pelo ex-juiz da Suprema Corte da Itália Gherardo Colombo, um dos procuradores que participou da operação que sacudiu o mundo político italiano nos anos 1990. Em entrevista ao Estado, Colombo afirma que o juiz federal Sérgio Moro, responsável pela condução da Lava Jato em Curitiba (PR), deveria ter cumprido um período de quarentena antes de aceitar o convite para comandar o Ministério da Justiça do governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL). A seguir, os principais trechos de sua entrevista:

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Como o sr. vê a decisão do juiz Sérgio Moro de aceitar convite para ser o ministro da Justiça e da Segurança Pública no governo de Jair Bolsonaro?

Na Itália não existe proibição para os magistrados suspenderem suas funções a fim de exercer uma função pública, ainda que existam proposta de lei nesse sentido. Pessoalmente, acredito que para ocupar uma função na administração pública um magistrado deve se demitir definitivamente do seu trabalho, deixar passar um tempo consistente, entre a demissão e o início da sua atividade política, tanto mais consistente quando mais tenha adquirido fama em razão de seu trabalho. Na minha opinião há ainda outro problema. A junção das duas pastas - Justiça e Segurança Pública – é um contrassenso, pois se tratam de funções entre as quais podem surgir conflitos de interesse.

De seu ponto de vista, o que poderia ser feito nesses casos? Uma quarentena? Na Itália, não existem regras que regulem esse problema, ainda que a opinião pública peça, pois é difundida a ideia que se deve evitar o que é entendido como uma espécie de confusão entre a política e a Justiça.

Depois de ocupar um cargo político, um magistrado pode voltar a trabalhar como juiz? Sim, aqui ele pode e isso não levanta nenhum questionamento, quando se trata de pessoas que não eram conhecidas como juízes, mas incomoda a opinião pública no caso contrário.

O sr. esteve diversas vezes em debates no Brasil com o juiz Moro. Qual teria sido a sua decisão?

Eu não a teria tomado. Acho que estaria traindo a minha independência de magistrado, colocando em dúvida minha imparcialidade com a qual havia desenvolvido o meu trabalho. Em suma: não o teria feito. Mas, infelizmente, há tempos penso que um magistrado que adquiriu notoriedade desenvolvendo o seu trabalho não deveria dedicar-se à carreira política se não seguindo as regras que já mencionei.

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Moro fez nesta terça-feira, 6, um paralelo entre a sua escolha de entrar no governo de Bolsonaro e a do juiz Giovanni Falcone quando Falcone decidiu aceitar o convite de Claudio Martelli (então ministro da Justiça na Itália), que lhe confiou a Seção de Negócios Penais do Ministério da Justiça. Para o sr., esse paralelo é possível? Para mim, é absolutamente impossível. Giovanni Falcone foi desenvolver uma atividade de técnico e não de político. Creio que a Giovanni não agradaria de fato esse paralelo.

Martelli era um socialista que depois foi investigado pela operação Mãos Limpas por concurso em falência fraudulenta e no caso da maxipropina Enimont. Acabou condenado no caso Enimont. É este também um risco para o magistrado quando aceita um convite de um político?

Para dizer a verdade, Martelli foi investigado por mãos Limpas somente no caso Enimont. Não sei como responder, salvo constatar que isso às vezes acontece, razão pela qual é ainda mais evidente que se deve ter cautela nesse caso. E gostaria ainda de lembrar  que a disputa política deve ser realizado dentro da política e que a justiça penal deve servir exclusivamente para determinar responsabilidade pessoais. Eu seria, portanto, muito grato se, no futuro, as pessoas fossem mais prudentes ao estabelecer paralelos entre a Lava Jato e as Mãos Limpas.

Berlusconi convidou dois de seus colegas de Mãos Limpas para serem ministros da Justiça: Antonio Di Pietro e Piercamilo Davigo. Por que eles disseram não? O que eles disseram ao sr.? Para ter certeza, seria necessário perguntar aos dois. Creio, porém, que as motivações deles são as mesmas que eu teria tido: tutelar a reputação de si mesmos e de seus trabalho. Eu me recordo que Davido — são são passados 24 anos —, me falou que não teria aceitado a proposta porque ela seria contrária à sua deontologia.

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Di Pietro aceitou depois um cargo de ministro no governo de Romano Prodi... O trabalho do magistrado e em particular o do juiz (recordo que Di Pietro desempenhava a função de procurador) é delicado até mesmo na questão da aparência, além da efetividade, da independência e imparcialidade. O fato de Di Pietro ter deixado passar um ano e meio entre o abandono das investigações e a aceitação do cargo e o fato de ele ser ministro de um governo presidido pela Democracia Cristã – partido cujo secretário estava preso no âmbito de nossa investigação, acusado de dezenas e dezenas de crimes de corrupção e financiamento ilegal – fizeram com que a sua reputação ou a de nossas investigações não sofressem nenhum arranhão, até porque os integrantes daquele partido haviam sido pesadamente afetados pela nossa apuração.

O que procura o mundo político quando convida um juiz a se tornar um político ou ocupar um cargo político?

Eu creio que a proposta possa ser feita de boa fé quando se leva em consideração que o magistrado tenha uma particular competência na matéria. Às vezes, quando o magistrado é conhecido pode haver uma motivo instrumental, no sentido de que o partido político quer atrair votos graças á fama do magistrado. Pode acontecer, e para mim é a situação mais grave, que exista uma comunhão de interesses entre o partido político e o magistrado enquanto este está desenvolvendo seu trabalho como juiz.

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Para o sr., a participação de magistrados em cargos políticos desgasta a imagem de imparcialidade da Justiça?

Eu faria uma distinção: há magistrados que na Itália, sem serem famosos mas sendo muito preparados tecnicamente, desenvolveram muito proficuamente atividades políticas de um modo, digamos, tão independente, sem se tornar orgânicos de nenhum partido. Do exercício da função política da parte desses magistrados ninguém se queixa. Diferente é a situação de magistrados particularmente conhecidos, na crista da onda, que infelizmente estão desenvolvendo ainda as funções de juiz quando, de um dia para o outro, aceitam um cargo político de relevo, oferecido talvez por quem declarou ter sido favorecido pelas investigações. Para mim, a ideia de imparcialidade da magistratura fica prejudicada e não pouco com isso.

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