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Discurso serviu de pretexto para edição do AI-5

Na tribuna, o então deputado pediu que namoradas de oficiais e cadetes boicotassem militares

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Por Redação
Atualização:

"Apagado o meu nome, apagados os nomes de quase todos nós da memória de todos os brasileiros, nela ficará, intacta, a decisão que em breve a Câmara tomará. Não se lembrarão os pósteros do deputado cuja liberdade de exprimir da tribuna o seu pensamento é hoje contestada. Saberão todavia dizer se o parlamento a que pertenceu manteve a prerrogativa da inviolabilidade ou se dela abriu mão." Assim Márcio Moreira Alves, aos 32 anos, menos de dois de vida parlamentar, resumiu a situação que vivia, ao discursar na tribuna da Câmara, em 12 de dezembro de 1968. Sob pressão de um pedido do Executivo para processá-lo por supostamente injuriar as Forças Armadas, o deputado pelo MDB negou a ofensa e exortou o Legislativo a não "entregar a um pequeno grupo de extremistas o cutelo da sua degola". Não adiantou. No dia seguinte o regime editou o AI-5, que fechou a ditadura ainda mais e lhe cassou o mandato. O ato de força só foi revogado dez anos depois. O nome de Márcio, porém, não foi apagado. No discurso usado pela ala radical do regime para tentar processá-lo, Márcio pediu, em setembro, que, em protesto contra os espancamentos de manifestantes, os civis boicotassem os desfiles do Dia da Independência promovidos pelo governo. Foi no chamado pequeno expediente, o pinga-fogo, no qual os deputados faziam comunicações rápidas. No pronunciamento - um dos muitos que parlamentares fizeram para se solidarizar às manifestações estudantis -, o deputado pediu que namoradas de oficiais e cadetes boicotassem os militares. "Seria preciso fazer hoje no Brasil com que as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada, à porta de sua casa, àqueles que vilipendiam a nação", afirmou. Anos depois, restabelecida a democracia, contou o que o inspirara. "Foi um discurso de cinco minutos, baseado na história da Lisístrata, uma peça sobre as mulheres de Atenas, que se recusam a encontrar com os maridos enquanto eles não voltassem e lutassem contra Esparta", contou, em depoimento no documentário AI-05 - O Dia que Não Existiu, da TV Cultura e TV Câmara. "Não podia imaginar que fosse ter a importância que lhe deram." POLÍTICA Carioca com raízes mineiras, Márcio Emmanuel Moreira Alves nasceu em 14 de julho de 1936, em família de tradição política. Era filho de Márcio de Melo Franco Alves, que foi prefeito de Petrópolis (RJ) e secretário de Finanças da Guanabara no governo Negrão de Lima (1965-1971), e de Branca de Melo Franco, influente no meio católico. Seu avô, Honorato José Alves, fora deputado na República Velha por Minas , e era parente dos Melo Franco mineiros. Márcio chegou à política pelo jornalismo, projetado pelo Correio da Manhã, jornal do Rio onde começou a carreira aos 17 anos. Tornou-se nacionalmente famoso ao cobrir uma sessão da Assembleia de Alagoas que julgaria processo de impeachment contra o governador Muniz Falcão, mas degenerou em tiroteio entre parlamentares. Mesmo baleado, em um tempo sem internet e de comunicações difíceis, o repórter mandou a matéria - e ganhou o Prêmio Esso, o mais importante do jornalismo brasileiro, daquele ano. Curiosamente, o jornalista - que se bacharelou em ciências jurídicas e sociais pela hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)- apoiou inicialmente o golpe de 64, por ser adversário do presidente João Goulart. Mas logo passou à oposição, ao lado de colegas como Edmundo Muniz, Hermano Alves, Otto Maria Carpeaux e Carlos Heitor Cony, no Correio da Manhã, que nos primeiros dias do golpe se tornou oposicionista, depois de apoiar o movimento militar. Das páginas do jornal, Márcio comandou a campanha contra a tortura, denunciando casos de brutalização de prisioneiros políticos em todo o País. As denúncias viraram um livro: Torturas e Torturados. Em 1966, Márcio foi eleito deputado, ao lado de Hermano, pelo MDB, já que em 1965 o AI-2 extinguira o sistema partidário anterior e instituíra o bipartidarismo. Depois de se exilar no Chile, ainda em dezembro de 1968, Márcio esteve em mais de 40 universidades na América Latina e EUA, fazendo conferências. Em 1971, foi para a França, onde se doutorou pela Fundação Nacional de Ciências Políticas de Paris. Pouco depois, em 1974, foi para Lisboa, onde se tornou professor do Instituto Superior de Economia. Enquanto isso, era processado pelo regime militar no Brasil. Em 1977, chegou a ser indiciado em inquérito instaurado no Departamento de Ordem Política e Social (Dops) do Rio por causa da redistribuição no Brasil do livro Suor e alegria: os trabalhadores de Cuba, editado em Portugal. Em 1978, porém, a investigação foi arquivada. O ex-deputado retornou ao Brasil em 1979, anistiado. Tentou voltar à Câmara em 1982, pelo PMDB, mas não conseguiu. O Brasil mudara: o Correio da Manhã fechara, o MDB se esfacelara, a ditadura agonizava. Nos anos 90, já desfiliado do PMDB, voltara à imprensa, colaborando como colunista no Estado e em O Globo. Casado com a francesa Marie Breux Moreira Alves, Márcio deixa três filhos. Estava afastado da imprensa havia alguns anos, por problemas de saúde.

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