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Diretriz de comando da PM tira do bolsonarismo as redes sociais dos policiais

Ao proibir publicações relacionadas à polícia nas redes sociais de integrantes da corporação, comando da PM paulista mira prevenir episódios como o do coronel Aleksander e tira do bolsonarismo um instrumento eleitoral importante

Foto do author Marcelo Godoy
Por Marcelo Godoy
Atualização:

Caro leitor, Em junho de 2019, o então comandante do Exército, general Edson Pujol, fez publicar uma portaria disciplinando o uso de redes sociais pelas organizações militares e pelos militares da ativa. Até então, uma miríade de oficiais estava se manifestando por meio de perfis em redes sociais com publicações de caráter político-partidário, principalmente, em apoio a Jair Bolsonaro, durante a campanha a eleitoral e, depois, ao seu governo. A medida fez muitos oficiais refluírem, mas foi preciso quase um ano para que a tropa se enquadrasse em vez de se comportar publicamente no Twitter e no Facebook como se estivesse no salão do Clube Militar, durante a década de 1920, quando tenentes afrontavam generais e ficava o dito pelo não dito. No dia 24 de junho de 1922, o tenente Gwaier de Azevedo ofendeu uma dezena de oficiais generais, chamando-os de peculatários, devassos e ignorantes com a conivência do então presidente do Clube, o marechal Hermes da Fonseca, que garantiu a tribuna ao jovem oficial.

O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) no plenário da Câmara dos Deputados Foto: Dida Sampaio/Estadão

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O general Tasso Fragoso disse ao tenente: “Vossa Excelência veio aqui para dizer desaforos porque não conhece o regulamento do Clube”. Gwaier respondeu: “Em matéria de regulamentos sou como Vossa Excelência, não entendo coisa alguma”. A audiência gargalhou. Quando o general Andrade Neves disse que um dos caluniados, o general Aché, estava muito acima das “injúrias desse oficial energúmeno”, o tenente respondeu: “Antes ser energúmeno do que um devasso como Vossa Excelência, que já desviou fundos de subscrições públicas em proveito de suas numerosas concubinas”. A ata do clube registra a reação da audiência: “protesto”, “muito bem”. Em 2 de julho, o presidente da República, Epitácio Pessoa, mandou fechar o Clube Militar. No dia 5 de julho, os tenentes se rebelaram no Forte de Copacabana. Toda a agitação militar começara por causa de uma fake news: as cartas falsificadas atribuídas em 1921 ao candidato à Presidência Artur Bernardes, nas quais se atacavam Hermes e os militares que o apoiavam. Bernardes venceria a eleição contra o candidato dos tenentes, Nilo Peçanha. A Primeira República entraria em uma década de agitações que levaria ao seu fim, com a Revolução de 1930. Esse clima de Clube Militar dos anos 1920 renasceu em grupos de WhatsApp e em redes abertas, onde qualquer pessoa podia ter acesso às manifestações de oficiais da ativa criticando autoridades, como os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, ministros do Supremo Tribunal Federal e políticos de oposição a Bolsonaro, como o governador João Doria (PSDB). O ambiente levou o general da ativa Eduardo Pazuello a participar de um comício ao lado do presidente e um sargento de uma brigada do Paraná a participar de uma live de um major-deputado bolsonarista para criticar a política de promoções do Exército. A portaria do Exército sobre redes sociais e o que se passou depois com o governo Bolsonaro fez com que as Polícias Militares dos Estados começassem a trilhar o mesmo caminho da Força. Era preciso regular o uso das redes sociais pelos policiais militares. Em São Paulo, dois antecedentes deram o sinal amarelo: o caso do cabo Lemos e o do coronel Aleksander. O primeiro publicou uma foto em seu perfil de Instagram no dia 7 de junho de 2020, pouco antes de uma das primeiras manifestações populares contra Bolsonaro. Vestia uniforme e tinha um cassetete na mão. A legenda mostrava suas intenções: “Hoje tem manifestação no Largo da Batata, e os ANTIFAS (anti-fascistas) querem marcar presença. Eu quero cacetar a lomba dos baderneiros”. Lemos foi afastado no mesmo dia e punido. Depois foi a vez do coronel. Entre 1º e 20 de agosto de 2021, Aleksander Lacerda, então comandante do policiamento da região de Sorocaba, fez em sua conta aberta no Facebook 397 publicações de caráter político-partidário. Em 152 delas, ele reproduzia campanhas bolsonaristas, como a que defendia o voto impresso. Chamou o governador Doria de “cepa indiana”, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), de “covarde” e anunciava que compareceria à manifestação do dia 7 de setembro, que Bolsonaro ia promover na Avenida Paulista. Foi afastado duas horas depois de o Estadão revelar o caso. O pau que bateu no cabo Lemos também atingiu a cabeça do coronel.

O comandante da PM, coronel Fernando Alencar Medeiros, informou, na época, que a corporação estava se preparando para disciplinar o uso de redes sociais por seus integrantes. O resultado foi publicado no dia 27 pela PM e está em vigor desde sua publicação no Diário Oficial do Estado, na quarta-feira, 29. Mais do que garantir a disciplina e preservar os valores da polícia paulista, o documento manda um recado aos incautos que planejavam bagunçar o ano eleitoral de 2022, mobilizando a baderna fardada contra as leis da República. Os PMs terão 20 dias para excluir de suas redes sociais particulares todas as postagens que usem símbolos, imagens, áudios ou qualquer outra coisa que se refira direta ou indiretamente à Polícia Militar. Além de atacar o fenômeno dos policiais influencers e youtubers, que usam a imagem da polícia para auferir dinheiro em contas monetizadas, cursos, dicas para concursos e outras atividades, a portaria também quer disciplinar os que fazem da farda um trampolim para a política. Diz a diretriz que é vedado aos policiais fazer “considerações sobre atos de superiores, de caráter reivindicatório e de cunho político-partidário, ou depreciativos a outros órgãos públicos, autoridades e demais militares do Estado”. Até a foto de perfil na rede social é disciplinada, com a proibição de que ela “se relacione, direta ou indiretamente, com a condição de militar”. A portaria termina com um aviso importante nesse ano eleitoral: “O descumprimento das Condições de Execução elencadas (...), bem como de quaisquer valores e deveres policial-militares previstos em lei, deverá ser apurado à luz do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, Código Penal e Código Penal Militar, conforme o caso”.

Não é surpresa que o bolsonarismo mais uma vez, com Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) à frente, tenha se voltado contra o documento. O movimento chefiado pelo presidente tem horror a tudo o que significa ordem e disciplina. Dizem que as ofensas contra Doria são fruto da liberdade de expressão, como se fosse permitido ao cabo achincalhar o capitão. O deputado estadual Conte Lopes disse, em vídeo: "Não se pode falar que os policiais militares amam o Bolsonaro e odeiam o Doria. Essa é a questão de tudo isso nesse ano eleitoral".

Há mecanismos no regulamento disciplinar que preveem a discordância leal dos subordinados e até a crítica em relação aos seus superiores. E entre eles não estão os posts públicos nas redes sociais que contribuem apenas para desprestígio da instituição militar. Parece difícil explicar ao bolsonarismo que comandar não é mesmo que ser síndico de prédio. Ou que as coisas nos quartéis não se resolvem em assembleias.

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O deputado estadual Conte Lopes (Progressistas) discursa na Assembleia Legislativa em defesa de policiais flagrados por câmeras e acusados pela Corregedoria Foto: Reprodução / Alesp

A frase de Conte Lopes ajuda a entender a reação dos bolsonaristas. Eles esperavam contar com a capilaridade das redes sociais dos 130 mil policiais da ativa e da reserva para patrocinar suas campanhas eleitorais em 2022, com o objetivo de se apossarem dogoverno do Estado, elegendo Tarcísio Gomes de Freitas, pré-candidato do grupo. Sonham ainda manter as dez vagas da bancada da bala eleita na Assembleia Legislativa em 2018, tarefa cada vez mais distante, caso a míngua de votos para a segurança na eleição municipal de 2020 se mantiver em 2022.

O jeito é patrocinar polêmicas. O filho 03 do presidente é contra as câmeras que os PMs passaram a carregar para gravar o turno de trabalho. Diz que elas não deixam o policial “trabalhar”. É ofensivo sugerir que o trabalho dos policiais seja a prática de crimes, que os PMs precisem desligar câmeras para apanhar propina ou assassinar suspeitos. Alguém precisa avisar o deputado que a PM de São Paulo não é um valhacouto de bandidos. E que as câmeras darão legitimidade às ações dos policiais honestos e, assim como a nova diretriz do comando afastará os oportunistas da tropa, as câmeras vão tolher os delinquentes.

Críticos apartidários da portaria apontam para a extensão dela aos policiais da reserva como um item que pode gerar dúvidas e abusos. O comando deverá esclarecer esse ponto da norma e seu alcance. A tranquilidade e a paz social só podem ser garantidas se aqueles que têm a missão de manter a ordem pública preservarem a higidez de seus homens. O pêndulo estava lançado em direção à baderna. O comando o deslocou para o lado da ordem. E, assim, aos poucos, um novo equilíbrio será atingido.

PS: Um bom ano a todos. Esta coluna entra de férias e deve voltar em 31 de janeiro.

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