PUBLICIDADE

''''Direito dos lutadores cubanos foi ignorado''''

Para o embaixador, Brasil poderia ter usado boas relações com Cuba e obter garantias para boxeadores repatriados

Por Gabriel Manzano Filho
Atualização:

A decisão brasileira de mandar de volta para Cuba os boxeadores Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara "ignorou a relevância da questão dos direitos humanos" e deixou de lado uma longa tradição diplomática brasileira. E se os dois voltaram por vontade própria, como se informou, então o Brasil não aproveitou as relações especiais que tem com o governo de Fidel Castro, para cobrar daquele país garantias de que os repatriados e suas famílias teriam sua dignidade e seus direitos integralmente respeitados. Ao fazer essa avaliação, ontem, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer enfatizou que, em vários momentos do caso, as autoridades brasileiras não levaram em consideração a Constituição do País. Houve alguma coisa irregular no modo como o Brasil tratou o episódio da fuga e repatriamento dos dois boxeadores de Cuba? Há uma série de normas, a começar pela própria Constituição, que não foram levadas em consideração. Temos um inciso no art. 4º que prevê o asilo político. Fomos o primeiro país do continente a assinar o Estatuto dos Refugiados, de 1951. Somos um destino importante de muitas dessas pessoas do mundo todo, temos uma história de respeito e generosidade na defesa de pessoas submetidas a qualquer tipo de coerção política. E, apesar disso tudo, vimos um episódio como esse, tão cheio de dúvidas e explicações estranhas, ser tratado essencialmente por agentes e delegados de polícia. E não dá para entender como o Itamaraty não tomou conhecimento do problema. O que foi feito concretamente de errado, ou que era certo e deixou de ser feito? O fundamental é que não se deu a devida relevância, do começo ao fim do episódio, à questão dos direitos humanos. Parece-me grave a maneira simples, automática, com que os dois lutadores foram recambiados de volta ao seu país, um país reconhecidamente autoritário, onde previsivelmente seriam submetidos a sanções cujo alcance não temos como avaliar daqui. Qual lei, ou trecho de lei, estabelece essa relevância, e que foi esquecido pelas autoridades? A lei internacional está cheia de documentos, além dos muitos tratados e disposições dos países e da Constituição e do Estatuto dos Refugiados. O art. 13º da Declaração dos Direitos Humanos, no inciso 2, diz que toda pessoa tem direito a deixar qualquer país, se entender que nele é vítima de algum tipo de coerção. O art. 14º dá direito, a qualquer vítima, de procurar asilo em outro país. E existe um princípio importante, que na diplomacia chamamos de "non-refoulement" - o cuidado de não repatriar pessoas para países de governos autoritários. Ele foi ignorado no episódio. Entregar essas pessoas de volta a governos que desafiaram é um ato de desrespeito aos princípios democráticos. O que parece ter ocorrido, segundo algumas autoridades, é que os dois se arrependeram do gesto, possivelmente porque foram informados de que suas famílias, em Cuba, iriam sofrer as conseqüências de sua fuga. Por isso pediram para voltar, e o mais rápido possível, mesmo sabendo que sofreriam punição. Isso não torna a questão um pouco mais delicada? Se foi isso que ocorreu - e essa é uma versão verossímil - caberia ao Brasil fazer gestões diplomáticas e certificar-se de que o retorno dos dois a Cuba se faria em condições de total respeito à segurança e à dignidade deles e de suas famílias. O governo brasileiro, ao que se sabe, tem toda condição para pedir isso. O presidente da República e outras pessoas próximas dele são bons amigos de Castro. Teriam mantido a tradição de generosidade do Brasil se condicionassem o repatriamento a tais garantias. Mas os cubanos poderiam ter recusado tais condições. Como ficaria? Cuba é hoje um país em transição. O novo homem forte, Raul Castro, tem como bases de sustentação as Forças Armadas, o Partido Comunista, o aparato estatal. Em recente discurso ele declarou que a solução, para o futuro do país, não está na guerra, mas na política. Supõe-se, então, que há espaço para se fazer política com ele. Mas Fidel ainda manda e decide sozinho, como indicam suas mensagens pelo Granma. Mas creio que neste momento é possível um papel construtivo da parte do governo brasileiro nessa transição cubana. Há toda uma agenda não tratada ainda, que é a agenda da sociedade civil cubana. Nosso governo poderia ter trabalhado nessa direção. Isso é algo importante, que deveria ser cobrado das autoridades.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.