Despido na CPI, Araújo vestia a roupa do avesso; leia análise

Ex-chanceler levou à comissão a quimera de um ex-ministro-placebo, como se fosse possível neutralizar os efeitos adversos dos disparates de sua gestão no Itamaraty

Por Mário Scheffer
Atualização:

Pessoa notoriamente afeita a certas fixações ideológicas, Ernesto Araújo levou à CPI a quimera de um ex-ministro-placebo, como se fosse possível neutralizar os efeitos adversos dos disparates de sua gestão no Itamaraty. Parecia não estar ali o formulador de inimigos imaginários como o “comunavírus” e o “covidismo”, ou quem acreditava que o lema “fique em casa” ajudava o narcotráfico, ou quem associou a epidemia a uma conspiração contra a liberdade.

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Toldados pelo ressentimento, senadores fustigaram o ex-chanceler que um dia insinuou haver lobby parlamentar pela internet 5G da China. “A impressão que se tem é que existe um Ernesto que fala conosco, e nós ouvimos a voz, e outro que não sei onde fica”, arguiu-se.

Foi mesmo um depoimento bipolar. O alinhamento com Trump nunca existiu e, no atrito com a China, o provocador era o embaixador chinês, não o filho do presidente. Atrasos na aquisição de vacinas nunca ocorreram, por isso não se ocupou das ofertas da Pfizer ou negociou a compra da Coronavac, obrigação do Instituto Butantan. Pouco entregou além de imputar ao Ministério da Saúde e ao Palácio do Planalto as determinações de importar cloroquina, de menosprezar quantidade maior de vacinas do fundo Covax, e de voar até Israel, na famigerada viagem oficial de R$ 440 mil, atrás de um spray nasal em testes iniciais para o tratamento da covid.

O ex-chanceler Ernesto Araújo durante depoimento na CPI da Covid Foto: Gabriela Biló/Estadão

Na gestão de uma pandemia, vence a nação que integra ciência com diplomacia. O Itamaraty foi decisivo para que o Brasil respondesse bem a outro flagelo, o da aids, quando o País ficou ao lado da OMS, seguiu diretrizes mundiais de prevenção e saiu na frente na oferta de tratamento para todos. O País assumiu liderança global ao proteger as pessoas mais vulneráveis ao HIV; ao liderar oposição ao governo Bush, republicano como Trump, quando os Estados Unidos culparam a prostituição pela aids; ao quebrar patente e manter respeitosas relações com a Índia e a China, sem as quais não haveria aqui a produção nacional de medicamentos antirretrovirais genéricos e baratos.

Despido no Senado Federal, Ernesto Araújo vestia a roupa do avesso.

O sono da razão produz monstros. O desfile de criaturas perturbadoras vai pintando um quadro de Goya na CPI.

*PROFESSOR DA FACULDADE DE MEDICINA DA USP

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