Democracia de Chávez é ''''marca de fantasia''''

Ex-presidente critica reforma constitucional na Venezuela e diz que país tem de respeitar regras para entrar no Mercosul

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Por Lourival Sant'Anna
Atualização:

Conhecido por sua moderação, o senador José Sarney (PMDB-AP) adota um vocabulário contundente quando o assunto é a Venezuela do presidente Hugo Chávez. Para o primeiro presidente civil (1985 a 1990) depois de duas décadas de ditadura militar no Brasil, a democracia de Chávez é "uma marca de fantasia". "Na hora em que se torna um presidente elegível ad aeternum estamos abrindo a porta para que a ditadura chegue", disse Sarney, numa referência à reforma constitucional aprovada pela maioria chavista, que será submetida a referendo popular em 2 de dezembro. Não é um bom agouro para o destino do pedido de entrada da Venezuela no Mercosul, que tramita na Câmara e depois irá para o Senado: "Acho que temos que examinar as exigências do Mercosul. Uma delas é a Cláusula Democrática, e não podemos transigir nesse ponto", alertou o senador, que fundou o bloco junto com o então presidente argentino, Raúl Alfonsín (1983 a 1989). "O problema da Venezuela no Mercosul é se ela deseja inverter os seus objetivos iniciais, que é obrigada a cumprir." Em entrevista ao Estado, Sarney, entusiasta da integração sul-americana e admirador do líder da independência hispano-americana Simón Bolívar (1783-1830), contesta as credenciais "bolivarianas" de Chávez e reitera suas preocupações com as compras de armamentos do presidente venezuelano, que foram tema de um discurso seu no Senado, na segunda-feira. Só quando fala da aparente condescendência do presidente Lula com Chávez é que Sarney recobra a moderação: "Ele tem por obrigação procurar manter excelentes relações com todos os países do continente." O sr. tem conversado com outras pessoas, como os militares, por exemplo, sobre esse tema? Não. Eu, apenas, com minha experiência de ter sido o presidente da transição, tenho por obrigação ser vigilante no que se refere à democracia no continente. Eu e Alfonsín criamos a Cláusula Democrática (do Mercosul). E também sempre tive a preocupação de transformar a América Latina numa região de paz. Tanto que, durante o meu governo, fiz aquela moção nas Nações Unidas considerando o Atlântico Sul área de paz - aprovada com apenas um voto contra, dos Estados Unidos -, para que nessa área não circulassem navios de guerra. Entrei, a primeira coisa que fiz foi acabar com nossa corrida nuclear com a Argentina. Quando o Chile comprou aqueles F-16, achei que não podia de maneira nenhuma romper o embargo de armas que Jimmy Carter (presidente americano de 1977 a 1981) decretou para a América do Sul, para não criar um desequilíbrio estratégico. Porque, sem dúvida nenhuma, isso representa uma corrida armamentista. Os outros países se sentem no dever de não perder sua posição. Quando o pedido do ingresso da Venezuela no Mercosul chegar ao Senado, o que o sr. vai defender? Acho que temos que examinar as exigências do Mercosul. Uma delas é a Cláusula Democrática e não podemos transigir nesse ponto. O sr. acha que a Venezuela é hoje uma democracia? Tenho dúvidas quanto às reformas que estão sendo feitas, porque o coração da democracia é a alternância de poder, o respeito aos direitos humanos e as liberdades civis. Evidentemente, as medidas que estão sendo tomadas são preocupantes. Na hora em que se torna um presidente elegível ad aeternum, estamos abrindo a porta para que a ditadura chegue. Eleição não é problema. O Alfredo Stroessner (ditador paraguaio de 1954 a 1989) era sempre eleito. Controla a mídia, não assegura direitos humanos. Então, é apenas uma democracia virtual. Passa a ser uma marca de fantasia, como as democracias populares. Incidentalmente, o Congresso está discutindo a reeleição aqui no Brasil. Qual é sua posição? Fui contra a reeleição quando foi feita no Brasil. Acho que essa aí (a possibilidade de reeleições ilimitadas) não está em discussão. É apenas uma especulação que está sendo feita, com total reação de todo mundo, nem há qualquer possibilidade de que isso ocorra no Brasil. O próprio presidente Lula já teve a oportunidade de acabar com essa conversa. Sou favorável a que tenhamos um mandato mais longo, de 5 ou 6 anos, e não tenhamos reeleição. O sr. demonstrou, no seu discurso, que acompanha Hugo Chávez há muitos anos. Até lembrou o lançamento do Movimento Revolucionário Bolivariano, em 1984. Sempre fui defensor da integração das Américas portuguesa e espanhola. Tanto que, quando iniciei, como presidente, esse processo de integração, fui chamado de "o primeiro presidente bolivariano do Brasil". Porque não queria que estivéssemos de costas para nossos vizinhos, como ocorreu historicamente. Como senador do Norte e presidente que deu início à integração do Sul, o que acha do argumento de que a entrada da Venezuela poria o Norte do Brasil no Mercosul? Esse argumento não existe. O Brasil é um só. Não podemos dividir nossas responsabilidades internacionais entre vários Brasis. É o Brasil que faz parte do Mercosul. O problema da Venezuela no Mercosul é se ela deseja inverter os seus objetivos iniciais, que é obrigada a cumprir. Como o bolivarianismo se combina com o investimento em armamentos que Chávez está fazendo? A mim me perturba muito (a expressão) socialismo bolivariano. Bolívar morreu em 1830. A palavra socialismo aparece pela primeira vez em 1838. Nós falávamos, antes, dos românticos do socialismo, como (o teórico do anarquismo francês Pierre-Joseph) Proudhon (1809-1865). Mas, como ação política, essa palavra surge em 1838 e, depois, com o Manifesto Comunista (de Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848). Então, o Bolívar está mais para Napoleão Bonaparte (que governou a França entre 1779 e 1814) do que para Marx. Ele foi do Estado-Maior de Napoleão na Espanha. Já li várias biografias de Bolívar e nunca vi nenhuma referência a que ele tivesse usado a palavra socialismo, até porque no seu tempo isso não existia. O sr. não acha que o governo brasileiro tem sido excessivamente condescendente com o venezuelano? Não. Acho que o governo brasileiro tem agido corretamente no sentido de cumprir a Constituição e não interferir nos assuntos internos de outros países. Mas, se o presidente Lula tivesse sido um pouco mais frio em relação a Chávez, será que não teria... Não, acho que ele tem por obrigação procurar manter excelentes relações com todos os países do continente.

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