
10 de setembro de 2019 | 10h28
No momento em que a Câmara dos Deputados articula a volta do foro especial por prerrogativa de função para políticos, parlamentares preparam uma mudança na proposta de emenda à Constituição (PEC) que reduz o foro privilegiado no País ao presidente da República, vice, presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo, conforme mostrou o Estado nesta terça, 10, seria impedir que juízes de primeira instância determinem medidas contra políticos, tais como a prisão, a quebra de sigilos bancário e telefônico, além de busca e apreensão.
Em 2017, o texto foi aprovado pelo Senado como uma retaliação à Corte, que, na época, começava a discutir a restrição do foro privilegiado apenas para parlamentares. Na prática, o foro determina que ocupantes de determinados cargos não sejam julgados na primeira instância, como qualquer cidadão, e sim por tribunais superiores. O objetivo seria proteger os cargos, e não as pessoas que o ocupam, já que nesses haveria menos vulnerabilidade de pressões externas e mais independência.
Para o professor Carlos Gonçalves, da PUC-SP, a sensação de impunidade está relacionada menos ao foro e mais às decisões dos tribunais. "Ao se deslocar a competência para uma autoridade judicial superior, garante-se mais conforto, independência e eficiência no julgamento, imunizando o julgador de uma indevida influência política do réu ou do grupo político ao qual pertence."
Já para Mamede Said, coordenador da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, o foro deveria ser banido, pois tem sido usado como "sinônimo de impunidade". "O número de condenações envolvendo os agentes públicos protegidos pelo foro privilegiado é muito diminuto", avalia.
O Estado ouviu os dois juristas para responderem: políticos devem ter foro privilegiado? Veja suas considerações e opine na enquete.
A expressão “foro privilegiado” induz a uma compreensão equivocada do instituto, dado que o deslocamento de foro à autoridade judicial superior “por prerrogativa de função” não se configura exatamente como um benefício ao agente político a quem se destina.
Trata-se de uma instituição de proteção do Estado Democrático, usado na grande maioria das democracias, que procura garantir um julgamento justo daqueles que exercem funções públicas de destaque. Com esse expediente, a autoridade é julgada por órgão de semelhante patamar hierárquico.
Ora, imaginemos um juiz de vara comum, recém ingresso na carreira, ter que processar e julgar um senador do seu Estado, fortemente influente na política local e nacional. Ao se deslocar a competência para uma autoridade judicial superior, garante-se mais conforto, independência e eficiência no julgamento, imunizando o julgador de uma indevida influência política do réu ou do grupo político ao qual pertence.
Por outro lado, essa prerrogativa também visa a uma proteção ao livre exercício do cargo político em relação a eventual juízo local demasiadamente politizado. Ou seja, trata-se de uma proteção de dupla via: que o julgado não irá influenciar o julgador; bem como, que o julgador não vá interferir no exercício do poder do julgado em razão de conveniências políticas.
Ademais, o deslocamento da jurisdição para as instâncias superiores, implica na restrição das oportunidades de defesa, dado que se diminuem as instâncias, e, consequentemente, possibilita chegar-se mais rapidamente a uma eventual condenação. Portanto, não pode ser reconhecido como um efetivo “privilégio”.
A discordância que gera a sensação de impunidade não está relacionada ao deslocamento do foro, mas ao mérito das decisões proferidas pelos tribunais de cúpula.
O foro especial por prerrogativa de função, da forma como existe na atualidade, deveria ser banido em nome da democracia e da República. Ele tem sido usado como sinônimo de impunidade, pois o número de condenações envolvendo os agentes públicos protegidos pelo foro privilegiado é muito diminuto. O STF e demais instâncias superiores não são vocacionados para promover atos instrucionais próprios dos inquéritos e ações penais. O resultado é que não têm sido capazes de julgar com celeridade os processos que envolvem tais agentes, o que gera prescrição e impunidade.
Não há, nas democracias mais avançadas, o foro privilegiado com a extensão que existe na realidade brasileira. Em países nos quais ele está instituído (pois há países nos quais ele sequer existe), o rol de autoridades abarcadas pela prerrogativa de foro é muito reduzido, enquanto no Brasil ele alcança milhares de parlamentares, membros do Executivo, de tribunais superiores e de outras instâncias judiciais, ministros, governadores, conselheiros de tribunais de contas etc.
É importante que o STF tenha reduzido o alcance do foro por prerrogativa de função, fazendo com que, no caso de parlamentares, ele se aplique somente aos crimes praticados no cargo e em razão do cargo, e não a todo e qualquer crime. De igual maneira, a decisão de que, após concluída a instrução processual, com a intimação para a apresentação das razões finais, a competência do STF não seja afetada se o parlamentar deixar o cargo, numa tentativa de escapar de uma condenação iminente.
Essas medidas contribuem, certamente, para aprimorar o instituto, reduzindo as disfunções existentes e fazendo com que as hipóteses de foro privilegiado sejam interpretadas restritivamente. Entretanto, a questão deve ser enfrentada de modo mais enfático, promovendo-se uma redução drástica no número de autoridades alcançadas por ele, de forma a que seja reservado a um número mínimo de agentes, como os titulares dos Poderes de Estado. / Colaborou Renato Onofre
Encontrou algum erro? Entre em contato
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.