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Dada como morta, anistiada passou 16 anos na clandestinidade

Vida clandestina de Victória começou em 1º de abril de 1964, dia seguinte ao desencadeamento do golpe

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Por Wilson Tosta
Atualização:

Em março de 1980, uma mulher procurou o advogado Luís Eduardo Greenhalgh em seu escritório em São Paulo e, ao ser recebida, deu-lhe um susto: era Victória Grabois, filha de Maurício Grabois, mulher de Gilberto Olímpio Maria e irmã de André Grabois - militantes do PCdoB desaparecidos na Guerrilha do Araguaia (1972-1975). A hoje pesquisadora começava a encerrar quase 16 anos de clandestinidade, condição de muitos brasileiros perseguidos pelo regime militar que se aproximava do seu fim.

 

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No período, dada como morta por amigos do Rio, usara documentos com nome falso, com os quais viajara a Mato Grosso e à Europa, criara um filho, cursara universidade, tornara-se professora, alugara casas, comprara carro e fizera greves. Aconselhada pelo advogado a se "relegalizar", ainda teve de esperar, pois Greenhalgh estava ocupado tentando tirar da prisão um sindicalista, o hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

 

"O Lula me deve esta: adiei minha volta à legalidade para ele sair da cadeia", diverte-se Victória, que, depois, entrou, por intermédio do advogado, com uma Ação de Justificativa que lhe permitiu retomar o nome verdadeiro. "Entreguei a casa em São Paulo, vendi o carro e voltei para o Rio. Na clandestinidade, usou documentos verdadeiros tirados com uma certidão em nome de Teresa Freitas, obtida por um militante do PCdoB no Rio Grande do Sul.

 

A vida clandestina de Victória começou em 1º de abril de 1964, dia seguinte ao desencadeamento do golpe, quando, ainda solteira, ela e a família saíram da casa em que moravam, por causa de sua militância e ligações políticas. Esconderam-se em casas de parentes e amigos no Rio, até que se mudaram para São Paulo, onde a mãe, Alzira da Costa Reis, alugou uma casa. Pouco depois, em Porto Alegre, Victória conseguiu a certidão em nome de Teresa, sobrinha de um militante do partido. Com ela, pôde, como disse, "se legalizar, entre aspas". Tinha R.G e título eleitoral emitidos por órgãos oficiais, ainda que em nome de outra pessoa e com endereços catados no catálogo telefônico.

 

Àquela altura, Victória já fora incluída na primeira lista de estudantes expulsos pelos militares da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil - hoje, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ. Sua mãe e seu irmão também conseguiram papéis falsos. Mas foi com seus nomes verdadeiros que ela e o então namorado, Gilberto, foram para o interior paulista, onde se casaram. Depois, o casal foi para Guiratinga (MT). O objetivo era, com mais dois militantes, levantar um local para a guerrilha. Mas não foi atingido. "Desmobilizamos no fim de 1965", conta ela, que voltou com o marido a São Paulo. "Não era adequado, tinha muitas cidades próximas. " Em 1966, nasceu seu filho, Igor Grabois, no Rio, com a ajuda de uma tia de Victoria, Maria Grabois, que registrou o menino.

 

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Após 68, Gilberto foi para o Araguaia e André também - iam e voltavam. Victória, com os documentos em nome de de Teresa, começou a fazer cursos de idiomas. E tentava se adaptar à vida secreta, policiando-se para não se trair. "No começo, é muito difícil", diz ela, contando que a ajuda da família do pai e da mãe foi fundamental. "Tinha que introjetar, senão morreria."

 

GUERRILHA

 

Um dia, em 1972, o secretário-geral do PCdoB, João Amazonas, a procurou na casa do Jabaquara, onde vivia com o filho e a mãe, e contou que a guerrilha começara. Não sabia o que ocorrera a Maurício, Gilberto e André - ela só teria certeza da morte do pai e do marido em 1980, quando Greenhalgh lhe mostrou um relatório, embora então já soubesse que André morrera. Amazonas lhes disse que deveriam mudar de casa, o que conseguiu em dois dias, e arrumar uma fachada. Ela foi estudar num curso supletivo, para prestar vestibular para Letras, e entrou uma faculdade particular, cujo nome prefere preservar.

 

Ainda estudante, conseguiu emprego de aluna-mestre e foi fazendo provas para professor-substituto, que não tinha estabilidade. Ironicamente, trabalhava no governo Paulo Egydio Martins, alinhadíssimo à ditadura. E o salário dava para a manutenção da família: 19 mil cruzeiros em 1979, quando o aluguel da casa era 2.000. Chegou a fazer greves em 1978 e 1979, tendo sido uma vez encarregada pela diretora da escola em que trabalhava de percorrer turmas para explicar o movimento. E havia outros problemas: convenceu Igor, aos cinco anos, que passaria a se chamar Jorge, dizendo que, na escola em que passaria a estudar, era proibido ter nome estrangeiro. "Um dia, um menino perguntou para ele: ‘Como você se chama?’ E o Igor respondeu: ‘Na escola, me chamam de Jorge’". Aquilo me baqueou",conta.

 

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As coisas ficaram mais complicadas com a chegada da adolescência do garoto, quando a casa da clandestina virou palco de festas de adolescente. Alzira passou a dar aulas particulares para meninos e meninas da vizinhança. "Eu saía para jantar com uma amiga de coração na mão. Pensava: ‘Gente, se descobrirem, vão prender esse monte de crianças, que não têm nada a ver com isso."

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Desde a Chacina da Lapa, nos anos 70, quando parte da cúpula do PCdoB foi morta e outra foi presa, Victória e sua mãe perderam o contato com o partido. Quando veio a anistia, em 1979, ela quis voltar para o Rio, mas Alzira insistiu que Amazonas lhes pedira para não se mudarem, porque, se voltasse, teria uma casa para ficar. "Minha mãe era disciplinada, o partido vinha acima de tudo", relata. "Mas vimos que o Diógenes Arruda Câmara (dirigente do PC do B) voltou e não apareceu. O Amazonas voltou e não apareceu. Aí falei para minha mãe: ‘A gente tem que ir. Vou ficar a vida inteira me chamando Teresa, você, Maria, e o Igor, Jorge?"

 

Foi quando resolveu buscar ajuda jurídica. De volta ao Rio e à vida legal, ela dedicou-se a telefonar para amigos que não via havia anos - muitos achavam que morrera e se surpreendia. "Eu falava: ‘Aqui é Victória. Mas era mais fácil falar Teresa que Victória’, conta.

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