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Da cidade sem doutor para os tribunais

Promovida por merecimento, Daldice Santana, nova desembargadora do TRF3, fala da infância difícil na Bahia: ‘Eu tinha tudo para dar errado'

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Por Redação
Atualização:

Ela nasceu na roça, em 1963, o pai era vaqueiro, a mãe do lar, tinha sete irmãos e na cidade não havia doutor juiz, só o de paz, o que já era muito para Riacho de Santana, zona da caatinga da Bahia, a 720 quilômetros de Salvador. Daldice Maria Santana de Almeida, 47 anos, agora é desembargadora federal em São Paulo - a posse administrativa já transcorreu, a solene é nesta quinta.

 

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Do janelão envidraçado de seu gabinete, soberbo, carpetado, com ar condicionado, ornado com onze quadros pendurados nas paredes e quatro vasinhos de flores sobre a mesa e o aparador, ela avista a Avenida Paulista, símbolo da grande metrópole, que passa sete andares abaixo.

 

Foi promovida por merecimento e o ato que a conduziu a tão elevado grau da magistratura federal tem a assinatura de um nordestino como ela, Luiz Inácio Lula da Silva. Em 9 de dezembro, o então presidente a nomeou para uma cadeira no Tribunal Regional Federal da 3.ª Região (TRF3).

 

A recepção na corte a deixou perplexa: 11 mil processos relativos à Previdência e Assistência Social - dois mil feitos são anteriores a 2006, uma demanda já completou 13 anos sem resposta do poder ao qual pertence.

 

Aposentadoria por idade e por invalidez, pensão por morte, benefícios em geral são o seu dia a dia, e até a noite, muitas vezes, ela se debruça sobre a papelada, os códigos e os carimbos da Justiça. "Cada processo é uma vida", ela diz. "O direito é comum, mas a vida não é. Ainda que as regras sejam claras, é preciso analisar caso a caso."

 

Testemunhou injustiças, ainda menina. Viu grileiros em ação, tratores esmagando plantações, trabalhadores expulsos de sua terra. Essa fase da vida a fez acreditar que a conciliação é o melhor caminho para superar o anacronismo do Judiciário. "Muitas causas têm muito pouco de jurídico precisamente. O que o juiz tem que fazer? Favorecer o entendimento, a conversa. As partes vão construir o que é melhor para elas. É só uma questão de ajustes e de encontrar as vontades. O juiz tem que ser criativo para que as partes possam ter a oportunidade de decidir."

 

Na adolescência a leitura a encantava. Qualquer livro era bem vindo, podia ser romance, podia ser poesia, qualquer que fosse o tema. Um dia "seo" Rosa, amigo da família, anunciou uma viagem. "Eu pedi a ele: me traz um Atlas, dos grandes." "Seo" Rosa voltou com um livro de atas, um tijolo de capa dura. A mocinha agradeceu, por boa educação. "Ele se esforçou, não é verdade?"

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República. Morou por seis meses em uma república de estudantes em Salvador. Era 1981. Daldice cursava o pré-vestibular para Direito na Universidade Federal da Bahia, onde se formaria. No apartamento, ela e mais cinco. Alguém tinha que dar conta dos afazeres domésticos. "Esqueceram da empregada doméstica e eu fiquei com a tarefa. Eu pensei comigo. Quer saber? Pior é o trabalho na roça. Minha remuneração era estar lá em Salvador, estudando. Eu achava aquilo maravilhoso. Fazia comida também, só não lavava roupa. Eu tinha um objetivo que era jamais voltar. Virei a página."

 

Diploma na mão, em 1986, ouviu do sr. José Cardoso Santana, seu pai: "Filha, se for para você virar advogada desonesta prefiro que fique como eu, para não prejudicar ninguém." "A desonestidade é a morte para o meu pai, a desonestidade tem tantas roupas, tantas caras", ela diz.

 

Foi para o desafio do concurso público, sem padrinho nem cópia de gabarito. Em 1987, virou analista financeira da Secretaria da Fazenda da Bahia. Em 1991, passou para procuradora da Fazenda. Em 12 de novembro de 1993, pegou 4.º lugar no exame para juiz federal - 1,5 mil candidatos, só 14 empossados, 12 homens e duas mulheres, uma paulista e uma baiana que se especializou em Direito Administrativo e Processo Civil na Bahia e em Direito Público pela PUC-SP.

 

O tribunal de Daldice abrange São Paulo e Mato Grosso do Sul. Antes de chegar à corte e ao contracheque de R$ 24 mil, atuou em Presidente Prudente, Araçatuba, Dourados e Guaratinguetá. Em 1997, despachou em Bauru. Foi transferida para Santos, onde trabalhou na 1.ª Vara por 13 anos e recebeu título por gestão exemplar ao estabelecer padrões e metas de produtividade. "Eu tinha tudo para dar errado, fui educada para ser uma bela moça casadoira", conta Daldice, casada com Herbert de Bruyn Júnior, juiz federal, que lhe deu uma filha de 11 anos e um menino de 8.

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