CSN, 20 anos depois

Episódio impulsionou organização sindical, mas valeu pouco a seus personagens

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Por Alexandre Rodrigues
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Pouco mais de um mês depois da promulgação da Constituição de 1988, chamada "cidadã" por institucionalizar a democracia e direitos como o de greve, mais de 20 mil metalúrgicos decidiram cruzar os braços e ocupar o interior da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) para exigir a correção dos salários e as condições de trabalho previstas na Carta. Sabiam que desafiariam o autoritarismo que se recusava a sair de cena, mas não esperavam que a invasão do Exército para cumprir o mandado judicial de reintegração de posse os faria deixar a usina de Volta Redonda, marco do impulso industrializador getulista, com os corpos de três "companheiros" nos braços. A reação do País àquele 9 de novembro impulsionou a organização política dos trabalhadores na redemocratização, mas deu muito pouco aos operários. Vinte anos depois, a memória do episódio que ganhou repercussão internacional se diluiu em meio à impunidade, ao desamparo das vítimas e às disputas internas do sindicalismo de Volta Redonda - que não conseguiu evitar o desemprego e as conseqüências sociais da privatização da CSN em 1993. William Fernandes Leite, de 23 anos, foi baleado no pescoço quando observava a incursão militar do alto da aciaria, coração da siderúrgica, onde a maior parte dos grevistas se refugiou. Walmir Freitas de Monteiro, de 28, teve o tórax atravessado por uma bala de fuzil quando deu de cara com os militares na saída de um refeitório. O corpo de Carlos Augusto Barroso, de 19, foi encontrado com sinais de espancamento e afundamento de crânio. Apesar da abertura de um inquérito militar, não houve culpados. Nenhum militar foi autorizado a depor na Justiça comum, que rejeitou as denúncias do Ministério Público. Em vez de réu, o general José Luís Lopes da Silva, que comandou a invasão, tornou-se juiz em 1999, indicado ministro do Superior Tribunal Militar pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na ocasião, diante do mal-estar provocado por sua nomeação, defendeu a ação em Volta Redonda, classificando-a de "bem-sucedida". Ele se aposentou em 2004. REVEZES Os líderes sindicais que mobilizaram os operários, conquistando toda a cidade para a causa, tiveram recentemente seus revezes reconhecidos pelo governo. Cerca de 70 ingressaram com pedido de reparação na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça e pelo menos 18 já obtiveram julgamento favorável este ano pelas perseguições e demissões decorrentes da série de greves anteriores, iniciada em 1984. A comissão não divulgou a lista dos beneficiados, mas segundo alguns deles as indenizações vão de R$ 25 mil a R$ 200 mil. Já pelo assassinato dos três operários, o Estado não foi responsabilizado. Os familiares receberam na época uma compensação financeira da estatal a título de "acidente de trabalho". Parte do acordo que pôs fim à greve, a indenização foi calculada cruzando seus modestos salários de 75 mil cruzados e suas expectativas de vida. João Campanário, advogado do sindicato até hoje, diz que o acordo foi fechado às pressas para abreviar o desamparo das famílias. No 1.° de Maio de 1989, o sindicato reforçou o culto a William, Barroso e Walmir como mártires da luta operária ao inaugurar na cidade um monumento aos mortos projetado por Oscar Niemeyer. Não ficou 24 horas de pé. Na madrugada do dia seguinte, tombou sob o impacto de explosivos, num atentado atribuído a militares descontentes que nunca foi totalmente esclarecido. A pedido do arquiteto, o monumento não foi reformado para que as marcas servissem de alerta e memória para as próximas gerações. Aos 77 anos, aposentado da indústria naval, Manoel Monteiro, pai de Walmir, trabalha como barbeiro num pequeno salão na periferia de Volta Redonda. Ele perdeu a mulher logo depois do filho. A nora, Luciene, mergulhou na depressão que a levou ao alcoolismo, e morreu há cinco anos na pobreza. "Ela era apaixonada pelo Walmir. Ficou sem rumo." Ele ainda sofre ao lembrar da afinidade que tinha com o filho. Sempre que passa pela praça onde estão os escombros do memorial, pára para reler a placa que o homenageia, mas não tem orgulho: "Herói? Não foi. Ele foi vítima." Helvécio Alves, de 53 anos, detesta o monumento. Exibindo o punho direito sem movimento desde que uma bala de fuzil o atravessou na verdadeira batalha que se instalou com a tomada da usina pelos militares naquela noite de novembro, ele lembra que as seqüelas interromperam sua carreira à frente da locomotiva que pilotava na aciaria. Desistiu de buscar uma indenização depois de anos na Justiça sem sucesso. Amargurado, não enxerga benefícios para os trabalhadores depois da greve. Sente-se usado pelos sindicalistas e injustiçado pelo País. "Briguei por um direito e me negaram, como se eu fosse culpado. Todos se beneficiaram: general, sindicalista, juiz, presidente da CSN. Quem perdeu foi o trabalhador, que ficou esquecido", reclama Helvécio, que dá expediente num box do camelódromo de Volta Redonda para complementar a aposentadoria, que não chega a R$ 2 mil. Até hoje não tem casa própria. "Não tenho nada." PINTURA DE GUERRA Dispostos a resistir, os operários receberam com paus, pedras e instrumentos de trabalho os 2 mil soldados das brigadas de Infantaria Motorizada da capital e de Petrópolis, deslocadas pelo comando do Exército para reforçar as tropas do batalhão de Barra Mansa. Os militares, que tinham o rosto pintado para o combate, responderam com bombas e tiros de fuzil. Ao ver que as balas eram de verdade, os grevistas se embrenharam na escuridão dos galpões que conheciam como a palma da mão. Quando um se mostrava, os soldados atiravam. Atordoado pelo barulho, Helvécio buscava abrigo quando foi visto por soldados entrincheirados. "Eu ouvi uma voz dizer: ?atacar!? Aí foi aquela explosão no meu ouvido e a pancada no braço, que tinha levantado. Eles queriam acertar minha cabeça, atiraram para matar", relembra Helvécio, que não tinha parado de trabalhar. Depoimentos O GENERAL "Foi uma cena de agressividade exacerbada, inusitada no País. Eu me lembrei do Líbano. As pessoas caracterizadas como guerrilheiros, com máscaras para proteger o rosto do gás lacrimogêneo e impedir o reconhecimento. Batiam com os instrumentos nas paredes da aciaria, com lanças improvisadas. Um ambiente de conflagração e desafio. Incêndios em todas as partes. Tinham preparado com explosivos a destruição de algumas instalações para, em última instância, explodir aquilo lá" Carlos Eduardo Jansen, general da reserva, que comandou uma das tropas na invasão da CSN A MULHER "Como nos tempos de greve a PM era sempre muito violenta com os trabalhadores, as mulheres faziam uma espécie de cordão de isolamento entre os trabalhadores e a polícia. Bater nas mulheres era mais difícil, eles pensavam duas vezes. A gente vinha na frente, com coragem. Nós atraíamos outras mostrando que não queríamos nada mais do que Justiça" Maria Conceição dos Santos, funcionária demitida da CSN por razões políticas, organizava grupos de mulheres que cozinhavam para os operários e os protegiam em passeatas O OPERÁRIO "Na tarde antes do confronto, Juarez fez uma assembléia lá dentro dizendo que a direção da CSN não tinha aceitado a proposta e que o Exército viria para nos tirar. Ele disse: ?Vão morrer muitos de nós, mas não vamos arredar o pé. O Exército vai cair numa arapuca que não vai sair mais.? Logo ouvimos o Exército marchando pela cidade na nossa direção, mas não tínhamos como pensar no pior. Nem na revolução de 64 havia acontecido essa matança deliberada, para todo mundo ver. Éramos trabalhadores reivindicando direitos trabalhistas garantidos na lei, como o de greve. Não éramos bandidos" Helvécio Alves, aposentado, um dos operários baleados durante a invasão na usina O PAI "Começaram a chegar aqueles carros do Exército, mas não nos intimidamos porque lutávamos por um direito nosso. Estava chovendo quando vi o meu filho parado, com um fuzil cruzado e a pistola na cintura. Ele servia no quartel de Barra Mansa. Senti um arrepio. Eu e meus colegas defendendo salário e meu filho do outro lado, cumprindo ordem. As pessoas queriam jogar pedra e eu gritei: ?Pelo amor de Deus!, tenho um filho ali?. Vários também tinham. Marcelo pediu licença ao oficial, veio na minha direção e disse: ?Pai, vai embora. Nós não vamos fazer nada, mas a tropa que vem do Rio com a cara pintada vai.? Eu desobedeci e respondi: ?Meu filho, eu tenho que lutar?" Carlos Galdino Gomes, participante da resistência na aciaria, que encontrou o filho Marcelo, recruta do Exército, durante a invasão O POLICIAL MILITAR "Havia mais de 30 mil pessoas revoltadas na porta da sede da CSN após a morte dos trabalhadores e eu era responsável pela segurança do prédio. Nos chamavam de assassinos, estimulados por um carro de som. Previ uma tragédia, uma praça de guerra, mas não aconteceu nada. Seria impossível deter aquela massa se decidissem avançar contra nós. Talvez a única opção seria atirar contra a população e era a pior possível. Recebi uma ordem para recuar dez metros. Respondi que não poderia fazer qualquer movimento diante daquela massa humana na minha frente sem dar um sinal de fraqueza ou provocação. Foi uma grande experiência na minha vida e ali tive a certeza de que presenciava um momento histórico" Coronel PM Mário Sérgio Duarte, que era 1° tenente quando foi enviado a Volta Redonda O LÍDER "Nós nunca colocaríamos em risco os equipamentos da CSN, que era nossa casa, nosso ganha-pão. Ocupamos para manter a empresa funcionando e para pressionar. Tentaram jogar a opinião pública contra nós para justificar a ação do Exército, que colocou essa mancha de sangue na sua farda. Um dos trabalhadores morreu nos meus braços. Sabíamos que seria duro e avisamos os trabalhadores. Tínhamos organização, engenharia política, nenhum era mais importante do que o outro. Não tinha a sofisticação da guerrilha. Tínhamos coragem" Luiz Albano, empresário, um dos sindicalistas que lideraram a resistência ao Exército. O PRESIDENTE "Procuramos a CSN e ela não aceitava negociar o turno de seis horas que estava na Constituição. Entre tantos argumentos, alegava que não estava regulamentado. Como tínhamos naquele momento um grupo de trabalhadores bastante mobilizado e o momento político ajudava, houve a greve. O motivo da greve foi esse: nossos direitos. Em outras greves, o Exército ocupava a CSN antes e não nos deixava entrar. Daquela vez, decidimos, no domingo à noite, começar às 7h do dia seguinte para pegar o Exército desprevenido. E deu certo" Marcelo Felício, historiador, ex-operário que era presidente do Sindicato dos Metalúrgicos durante a greve de 1988 O SINDICALISTA "Pelo menos fizeram um pedido de desculpas. O conceito que eles tinham sobre Volta Redonda era outro. Para os conselheiros da anistia, éramos baderneiros. Tivemos que mostrar a eles que muitos companheiros foram demitidos e ficaram sem trabalho por anos antes de 1988. Fizeram Justiça" Bartolomeu Citeli, um dos líderes da greve de 88, que receberá 60 salários mínimos da Comissão de Anistia por ter sido demitido por motivos políticos

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