Comissão deve se opor a Bolsonaro e recomendar excluir ‘tratamento precoce’ do SUS

Colegiado técnico ligado à Saúde se reúne nesta semana e tendência é de se opor às orientações defendidas por Bolsonaro; diretriz poderá ser usada por CPI da Covid

PUBLICIDADE

Foto do author Lorenna Rodrigues
Por Lorenna Rodrigues (Broadcast) e
Atualização:

A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ligada ao Ministério da Saúde, deve recomendar a exclusão definitiva do uso na rede pública do chamado “tratamento precoce”, defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Formado por técnicos, o grupo se reunirá na quinta-feira para discutir o assunto. Segundo apurou o Estadão/Broadcast, a tendência do colegiado é de se opor à prescrição de cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada contra a covid-19.

PUBLICIDADE

Auxiliares próximos ao presidente ouvidos pela reportagem preveem que uma decisão da Conitec de aprovar uma diretriz em que a cloroquina não é recomendada poderá ser usada politicamente pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, do Senado, como prova de que Bolsonaro ignora avaliações científicas ao defender de forma reiterada os medicamentos do “kit covid”. 

Em maio do ano passado, o Ministério da Saúde divulgou orientação em que recomendava a administração da cloroquina desde os primeiros sinais da doença. Na ocasião, o documento foi a alternativa encontrada pelo então ministro, general Eduardo Pazuello, diante das dificuldades de se criar um protocolo propriamente dito – este sim com poder de ditar regras de atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Antes de Pazuello, dois ministros – Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich – se recusaram a publicar a recomendação e deixaram o cargo.

Mesmo sem eficácia comprovada no tratamento de covid-19, uso da cloroquina é defendido por Bolsonaro. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Já em maio deste ano, a comissão contraindicou os remédios ineficazes para pacientes internados. Agora, serão definidas as diretrizes para os casos de pacientes que não estão hospitalizados. Na prática, enquanto não há uma orientação oficial, cabe a cada médico decidir se receita ou não esses medicamentos.

Em tese, o Ministério da Saúde não tem obrigação legal de seguir os pareceres da Conitec, mas, geralmente, acata as recomendações do órgão técnico. Quando depôs à CPI da Covid, em 8 de junho, o ministro Marcelo Queiroga confiou à Conitec a palavra final sobre a recomendação ou não do uso do remédio para tratar pacientes contra o novo coronavírus no SUS.

“Infelizmente, hoje ainda, nós não temos medicações com eficácia comprovada para o enfrentamento dessa doença. Então, vamos esperar uma manifestação da Conitec sobre o tratamento da covid em todas as fases. Aí teremos uma política pública consolidada, oxalá com uma harmonização da classe médica sobre esse assunto, e encerramos de vez essa questão, para investir no que é fundamental”, declarou, à época.

Apesar das comprovações científicas da ineficácia, Bolsonaro continuou a defender o chamado “tratamento precoce”, inclusive em seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), no mês passado. “Desde o início da pandemia apoiamos a autonomia do médico em busca do tratamento precoce. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial”, afirmou.

Publicidade

Nas últimas semanas, a defesa do tratamento precoce foi um dos pontos explorados nas investigações da CPI da Covid, no Senado. Agora, os aliados do presidente temem que a decisão em relação ao tratamento ambulatorial da Conitec seja usada pela CPI contra o próprio governo. “A Conitec tem que reprovar isso porque o mundo inteiro reprovou”, afirmou o senador Otto Alencar (PSD-BA), que é médico. “Queiroga está muito fragilizado. Aceitou tudo o que Bolsonaro impôs, mais ou menos igual o Pazuello. Faz o que Bolsonaro quer, então fica”, afirmou o parlamentar.

A possibilidade de o órgão ligado à Saúde excluir a cloroquina de vez da rede pública também entrou na lista de insatisfações da chamada “ala ideológica” do governo com Queiroga. 

O titular da pasta já é alvo de críticas de aliados por ter liberado a vacinação de adolescentes e por não atuar de forma eficaz para barrar o “passaporte da vacina” – ele mesmo sugeriu o modelo, em abril. Queiroga ainda vem sendo pressionado por Bolsonaro a divulgar um plano para desobrigar o uso de máscaras.

Agora, uma nova decisão da Conitec contrária à vontade da ala ideológica pode ser também creditada a Queiroga e usada para intensificar o processo de fritura. Apesar de não ter influência direta sobre o grupo, coube ao ministro a escolha do presidente do colegiado, o médico Carlos Carvalho, professor titular de Pneumologia da USP. 

PUBLICIDADE

Carvalho é crítico da cloroquina e esteve entre os signatários de uma carta de profissionais da saúde que recomendava respeito às medidas de distanciamento, de higiene e de uso de máscara, além do combate à desinformação e às más práticas de prevenção e tratamento.

Queiroga voltou ao Brasil ontem após cumprir isolamento nos Estados Unidos por ter contraído covid-19. Ele viajou ao país para acompanhar Bolsonaro no evento da ONU. 

Antes da viagem, o ministro, que é médico, deu uma “guinada”. Em um aceno ao chefe, no mês passado suspendeu a vacinação de adolescentes, como defendia o presidente. Durante a visita oficial, e chegou a fazer gesto obsceno a manifestantes contrários ao presidente em Nova York. A imunização dos adolescentes foi retomada pela Saúde pouco tempo depois.

Publicidade

Composição

A Conitec é formada por um representante de cada secretaria do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina (CFM), do Conselho Nacional de Saúde (CNS), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Agência Nacional de Saúde (ANS), além de secretarias estaduais e municipais de saúde. É responsável por assessorar o ministério na decisão de quais medicamentos e tratamentos que serão utilizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), a comissão tem até 26 de outubro para se pronunciar sobre o tema.

Procurado, o Ministério da Saúde não havia se manifestado até a conclusão desta edição. 

Cronologia: a cloroquina e o governo

  • Abril de 2020

Demissão de ministros: Primeiro ministro da Saúde do governo de Jair Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta é demitido após se recusar a recomendar o uso da cloroquina na rede pública. Seu substituto, o também médico Nelson Teich, deixa o cargo menos de um mês depois pelo mesmo motivo.

  • Maio

Publicidade

Pazuello cumpre ordem: Já sob Eduardo Pazuello, o Ministério da Saúde publica orientação sobre o uso da cloroquina, estendendo a possibilidade de médicos prescreverem a substância a todos os pacientes com covid-19.

  • Maio de 2021

Pacientes hospitalizados: A Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) dá aval a parecer de especialistas coordenado pelo Ministério da Saúde que contraindica cloroquina e outros medicamentos sem eficácia comprovada para pacientes hospitalizados. O documento não trata do chamado “tratamento precoce”.

  • Junho

Queiroga se esquiva: À CPI da Covid, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, esquiva-se de responder qual é sua posição sobre o uso da cloroquina em pacientes com covid-19. Ele diz que aguarda uma posição da Conitec.

  • Setembro

STF cobra ministro: O ministro do STF Ricardo Lewandowski dá 180 dias para Queiroga apresentar protocolo e diretrizes sobre os medicamentos do chamado “tratamento precoce” defendido por Bolsonaro.

Publicidade

  • Outubro

Comissão marca reunião: A Conitec marca para a próxima quinta-feira a análise do tema. A pauta diz que estará em discussão uma “apreciação inicial das diretrizes brasileiras para tratamento medicamentoso ambulatorial do paciente com covid-19”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.