Com câmeras na mão, jovens indígenas lutam para manter tradição

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Por MARIA PIA PALERMO
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O jovem Takumã Kuikuro, parado ao lado de uma câmera sobre um tripé, com o rosto e o corpo pintados, entrevistava o cacique dos nafukuá no meio da aldeia Ipatse, da etnia kuikuro, no Alto Xingu. Também nu e pintado, o chefe revezava o olhar entre a lente e o jovem cineasta, enquanto contava que se arrepiou ao ver os filmes feitos pelos índios. "Ele gostou do filme, achou bonito, e disse que a gente pode levar isso adiante para nossos filhos e netos", afirmou Takumã, 23, traduzindo os comentários do cacique sobre o que viu projetado em um imenso telão, com a ajuda de um gerador, no centro da aldeia na noite de sábado. Takumã é um dos seis jovens realizadores, como se chamam na aldeia os iniciados na arte de filmar, que com suas duas câmeras digitais registravam incansavelmente todos os momentos da festa do lançamento do DVD "Cineastas Indígenas". O evento no final de semana também comemorou a inauguração do centro de documentação da Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu, na aldeia do Parque Indígena do Xingu, que reúne 14 etnias e uma população de cerca de 5 mil indígenas em 27 mil quilômetros quadrados, no Mato Grosso. Ao olhar dos jovens índios não escapavam nem os visitantes brancos, também com suas câmeras de filmar ou fotográficas, e apontavam a filmadora impiedosamente, invertendo o foco, até então centrado só neles. Os curtas-metragens "Imbé Gikegü" ("Cheiro de Pequi", 2006) e "Nguné Eu" ("O Dia em que a Lua Menstruou," 2004), ambos premiados em festivais nacionais e internacionais, foram aplaudidos no sábado por uma platéia de habitantes locais e convidados de outras etnias espalhada pelo chão da parte central da aldeia, circundada por malocas. Os filmes contam, em kuikuro mas com legendas, lendas do seu povo. Na mesma noite, sob um céu estrelado, o público assistiu ao novo trabalho do jornalista e documentarista Washington Novaes, que duas décadas depois de realizar "Xingu, a Terra Mágica", lança uma nova série, "Xingu, a Terra Ameaçada", que estréia dia 29 na TV Cultura. CAMINHOS PARA PRESERVAÇÃO O mergulho dos índios na "tecnologia do branco" para documentar suas tradições culturais foi uma demanda do cacique Afukaká Kuikuro, que buscava caminhos para preservar os cantos e as danças que, para ele, estavam ameaçados frente ao desinteresse dos jovens, cujo contato com as cidades próximas e o acesso à TV fez crescer o interesse por estudar e trabalhar fora da aldeia. "Ele falava: ''vocês vão virar índios que não têm cantos, cultura''. Quando cheguei aqui, ele disse para gravar tudo", explicou o antropólogo Carlos Fausto, do Museu Nacional/UFRJ, que fala kuikuro e está envolvido nesse projeto há cerca de oito anos. A partir daí, formou-se a associação e depois uma parceria com a ONG Vídeo nas Aldeias, para ensinar os jovens. "O Xingu foi muito explorado em termos de imagem. E isso é uma inversão dessa assimetria. Toda a aposta é que é possível ter uma relação mais simétrica com a sociedade nacional. Isso passa certamente pela apropriação de conhecimento não-indígena", disse Fausto. "O vídeo é uma linguagem da qual podem se apropriar rapidamente", disse, lembrando a importância da oralidade nessas cultura. Cada festa xinguana depende de dezenas, até centenas de cantos e leva-se muito tempo para memorizá-los. "Uma auto-representação por escrito seria um processo muito longo", acrescentou. Para Mari Corrêa, que há 20 anos está ao lado de Vincent Carelli na coordenação do Vídeo nas Aldeias, a tecnologia entra de uma forma transversal e democrática. "Eles têm uma atração por nossas tecnologias e, neste caso, eles conseguem chegar aos mais velhos e há um diálogo que se restabelece entre as gerações." "COISA DE BRANCO" Para Piarcumã Ywalapiti, 53 anos, a câmera também ajuda a proteger as comunidades, denunciando os problemas que enfrentam, como invasões de terra, poluição dos rios e construção de hidrelétrica na região. "Vocês não bebem mais água do rio e acham que não tem valor, mas a gente sim. Além da água para beber tem o alimento, peixe, tartaruga... espero que essa tecnologia nos ajude", afirmou, enquanto registrava com sua pequena câmera filmadora os passos dos índios e índias que executavam a dança do papagaio no centro da aldeia. Ele conta que em sua aldeia, da etnia ywalapiti, desde o mês passado já contam com duas câmeras digitais. Mas considera que nem toda tecnologia não-indígena faz bem. Apesar de lembrar com orgulho que foi o primeiro índio da região a pisar em uma emissora de TV, Piracumã se preocupa com os efeitos dos aparelhos cada vez mais freqüentes nas aldeias. "Pode mostrar muita coisa boa para criança branca, mas para índio não", disse Piracumã, que em 1963 foi levado por Orlando Villas Boas à TV Tupi para cantar. Para ele, a criança tem que aprender "as coisas do branco para se proteger e manter sua cultura". Maricá Kuikuro, 25 anos e um dos realizadores, lembra que no início ouvia na aldeia que filmar era "coisa de branco". "Hoje em dia não acham mais ruim, porque aprendemos a usar e entedem o trabalho que estamos fazendo, documentando nossa cultura. Agora respeitam", afirmou. O jovem Takumã, que integra o projeto desde 2003 e participou da realização dos dois filmes, já sonha com o novo ofício e não se intimida ao fazer comparações com os "brancos". "A gente filma melhor do que branco ... porque conhece a seqüência da nossa história, os brancos, não. Por isso é importante que o índio faça o filme dele. A gente entende a língua, pode seguir quando estão conversando. Branco bota tudo misturado", disse Takumã, enquanto usava uma pequena toalha para limpar a lente, constantemente coberta pela poeira da aldeia, principalmente na hora das danças. "Não sabia nem fazer filme, agora tô com vontade de fazer filme como branco faz de artes marciais, mas com lutas de nossos guerreiros de antigamente", afirmou Takumã.

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