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Com Barra Torres, Marinha acumula desgastes no governo Bolsonaro

Na semana passada, Barra Torres cobrou retratação pública após o presidente questionar os "interesses" de integrantes da Anvisa ao reclamar do aval à vacinação infantil

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Por Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA - Sob novo comando há nove meses, a Marinha do Brasil colecionou episódios com potencial de desgaste para o governo de Jair Bolsonaro. O choque de um de seus oficiais generais com o presidente foi o principal deles. Após o presidente levantar suspeitas sobre supostos “interesses” da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em dar aval à vacinação de crianças contra a covid-19, o contra-almirante da reserva Antonio Barra Torres, diretor-presidente do órgão, fez um desafio público e cobrou retratação.

Dias antes, a Força Naval foi questionada sobre a fiscalização da navegação no Lago de Furnas, em Capitólio (MG), onde o desabamento de um paredão sobre lanchas matou dez pessoas, e teve sua imagem associada à indiferença de Bolsonaro com as vítimas das enchentes na Bahia, apesar de seu quadro ter atuado no socorro. Ao mesmo tempo, a Marinha havia sido vinculada ao presidente em notícias críticas, pois ele se recusou a interromper as férias para ir à Bahia, mais uma vez, durante as inundações, e foi fotografado enquanto pilotava uma moto aquática com a logomarca da força, em Santa Catarina. Antecessores dele já usaram embarcações militares para lazer.

Na semana passada, Barra Torres cobrou retratação pública após o presidente questionar os "interesses" de integrantes da Anvisa ao reclamar do aval à vacinação infantil. Foto: GABRIELA BILO / ESTADÃO

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A postura de Barra Torres causou mal-estar na Marinha. Na nota-resposta a Bolsonaro, o almirante não só discorreu sobre a carreira de médico-marinheiro, como citou mais de uma vez e assinou a missiva com o cargo na Anvisa e na Marinha: “Contra-Almirante RM1 Médico”, o posto que alcançou em 32 anos de serviço ativo, encerrados em 2019. Ele é um dos poucos médicos da instituição a chegar ao quadro de oficiais-generais, com duas estrelas, o terceiro mais alto na hierarquia militar. O diretor da Anvisa afirmou que foi apenas uma questão metodológica, formal.

Só que o debate já estava na praça, e a Marinha viu seu primeiro general numa situação de enfrentamento público ao presidente, algo até então evitado por outros militares de alta patente que colaboraram com o governo, mesmo os que saíram descontentes. Alguns deles se solidarizaram com Barra Torres, caso do general da reserva do Exército Francisco Mamede de Brito Filho, ex-chefe de gabinete no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). “Se o cargo é assegurado por mandato ou não, o que a sociedade precisa é de posturas éticas e institucionais como a de Barra Torres. Minha continência, general”, disse Brito.

O Estatuto dos Militares proíbe esse tipo de referência usada por Barra Torres. Segundo o código, o militar deve “abster-se, na inatividade, do uso das designações hierárquicas no exercício de cargo ou função de natureza civil, mesmo que seja da administração pública”. Também não deve reproduzir a patente “para discutir ou provocar discussões pela imprensa a respeito de assuntos políticos ou militares”.

O Estadão questionou o Comando da Marinha sobre o caso de Barra Torres e se ele estava sujeito à punição, em apuração disciplinar, mas a pergunta foi ignorada. A reportagem ouviu de um almirante que a cúpula da Marinha “não tem o que dizer” sobre o fato. Outro oficial disse que o caso tende a ser deixado de lado, para evitar que a força seja arrastada ainda mais para o que, na visão dele, é um embate político restrito ao diretor da Anvisa e ao presidente. O uso da patente foi considerado inadequado e evitável, pelo fato de o almirante estar em cargo civil.

O choque entre o general da Anvisa e o capitão do Palácio do Planalto dividiu oficiais ligados à base da tropa. Houve estranhamento pelo fato de Bolsonaro ser o comandante supremo das Forças Armadas e, por isso, superior ao almirante, ainda que na reserva. Comentários sobre quebra de hierarquia pipocaram em fóruns virtuais frequentados por militares. Quem concorda com a vacinação, como a maioria da sociedade brasileira, vibrou com a atitude de Barra Torres. Alguns militares, por terem convivido com o almirante, descrito como pessoa de temperamento equilibrado, estranharam a atitude. Outros especularam que ele poderia estar influenciado pelos técnicos da Anvisa, alvo de ataques do presidente, ou pela proximidade das eleições. Barra Torres exerce mandato de cinco anos na diretoria da agência e teria que deixar o cargo até o início de abril se desejasse disputar mandato eletivo.

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Paredão

A resposta do almirante da Anvisa foi divulgada enquanto a Marinha já estava no noticiário de viés negativo. A força era questionada por causa do desabamento de um paredão sobre lanchas que passeavam próximas à margem do cânion de Capitólio. No País, as regras de navegação em lagos, inclusive as distâncias permitidas de aproximação quando há banhistas e a fiscalização das embarcações, são responsabilidade da Marinha, que se instalou na região há dois anos. O tráfego aquaviário vinha aumentando com a popularização de Capitólio como destino turístico para passeios náuticos. Os militares também auxiliaram nas buscas e resgate de vítimas. Um helicóptero, quatro lanchas e três jet-skis foram mobilizados.

Braga Netto apresenta os comandantes Garnier (Marinha), Paulo Sérgio (Exército) e Batista Jr. (Aeronáutica) em março de 2021. Foto: Dida sampaio/Estadão

Segundo militares, o ordenamento do espaço no lago era da prefeitura de Capitólio, por meio de decreto de 2019. A Marinha cooperava na fiscalização nas águas sob jurisdição do município.

No caso da moto aquática, a explicação é que a Marinha tem a responsabilidade de garantir a segurança do presidente e familiares em ambientes aquáticos. O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência diz que a segurança pessoal é “ininterrupta” e independe de o mandatário estar em um evento público de cunho oficial, privado ou momentos de lazer. Paradoxalmente, a Marinha era uma das forças mais mobilizadas nos esforços de socorro às vítimas das enchentes, seja na distribuição de insumos ou no resgate de pessoas desabrigadas. Foi em um helicóptero da Marinha que o presidente visitou o Estado, ao lado do comandante-geral, almirante de esquadra Almir Garnier.

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Aliado de Bolsonaro no comando da força

O almirante Almir Garnier chegou ao comando da Marinha em abril passado, quando o presidente Jair Bolsonaro fez uma intervenção inédita na pasta da Defesa, trocando toda a cúpula. Em perfis nas redes sociais, o oficial tem feito uma ofensiva de comunicação. Ele divulga intensamente ações da força, como os trabalhos de suporte nas enchentes da Bahia, grava vídeos-selfie com depoimentos, visitas de rotina e operações. Em alguns casos, se manifesta sobre temas politicamente mais sensíveis.

Em recente ocasião, Garnier publicou um vídeo de Bolsonaro sendo aplaudido e acenando aos militares e seus familiares, em uma instalação da Marinha. Era um contraponto ao site Metrópoles, que divulgou que o presidente havia sido interrompido durante discurso e hostilizado por gritos na cerimônia de formatura de guardas-marinhas no Rio. “Os gritos vindos da plateia, durante o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Escola Naval foram em busca de socorro para um dos nossos militares, que havia desmaiado em razão do sol. Quem vai processar por fake news? Veja como o presidente foi realmente recebido, na nossa Marinha do Brasil.”

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Em outro vídeo, enquanto o comandante conversa com tripulantes de um helicóptero que prestava socorro em Itamaraju (BA), ao fundo é possível ouvir populares gritando “mito” para Bolsonaro. Ex-chefe de unidades militares na Bahia, o comandante tem dito que o trabalho dos soldados segue de modo “silencioso e anônimo”.

O presidente Jair Bolsonaro assistiu ao desfile de tanques ao lado de ministros e integrantes das Forças Armadas em agosto de 2021. Foto: Gabriela Biló/ESTADÃO

No ano passado, partiu do comandante a proposta de desviar blindados e outros equipamentos de guerra para circundar a Praça dos Três Poderes para saudar Bolsonaro. A manobra inédita, uma inovação na já tradicional Operação Formosa, espalhou fumaça na Esplanada e coincidiu com os debates sobre a adoção do voto impresso no Congresso e soou como intimidação aos opositores.

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Garnier já servia no Ministério da Defesa, como secretário-geral, antes de ser nomeado por Bolsonaro e era visto na ocasião como alguém alinhado ao pensamento do presidente, embora discreto e com bom trânsito político. Ele atravessou os governos Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) na Defesa, tendo assessorado os ex-ministros Celso Amorim, Jaques Wagner, Aldo Rebelo e Raul Jungmann.

O filho dele e a mulher ganharam cargos no governo. O advogado Almir Garnier Santos Junior foi contratado pela Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), estatal vinculada à Marinha; a esposa Selma Foligne Crespio de Pinho, servidora aposentada com mais de 30 anos de Marinha, foi contratada em cargo de chefia na Secretaria-Geral da Presidência e despacha no Palácio do Planalto.

Após sua saída, a Marinha perdeu espaço na Defesa, que passou a ter os três cargos-chave dominados pelo Exército, força de origem do ministro Braga Netto, do presidente e de seu vice, Hamilton Mourão, e que possui mais ministros no primeiro escalão. A Marinha tem, no entanto, integrantes em cargos de destaque no governo, com influência no gabinete presidencial. Além de Barra Torres na Anvisa, a Força Naval tem almirantes na chefia do Ministério de Minas e Energia (ministro Bento Albuquerque) e na Secretaria de Assuntos Estratégicos (Flávio Viana Rocha); o chefe do gabinete pessoal de Bolsonaro, Celio Faria Junior, é servidor civil da Marinha.

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