RIO – Mais de quatro décadas após as mortes do estudante e ativista Stuart Edgar Angel Jones e de sua mãe, a estilista Zuzu Angel, sua família conseguiu que fossem emitidas certidões de óbito oficializando que ambos foram assassinatos pelo Estado brasileiro sob a ditadura militar (1964-1985). “Nós, os sobreviventes, temos o dever de manter a memória de quem foi vítima da ditadura”, afirma a jornalista Hildegard Angel, filha de Zuzu e irmã de Stuart.
Em 1998, com base em depoimentos e perícias (o corpo de Zuzu foi exumado duas vezes), o Estado brasileiro reconheceu o assassinato da estilista. O reconhecimento ocorreu por meio da Comissão Nacional Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. O órgão, no mesmo ano, em outro processo, também reconheceu também que Stuart Angel foi morto pelo Estado. A partir de então a família poderia pedir o atestado de óbito de Stuart. Mas, como não havia necessidade legal (ele não deixou descendentes, nem bens materiais), não chegou a providenciá-lo.
“É sempre muito doloroso mexer com essa história, e não havia necessidade legal, então não fomos atrás”, conta Hildegard. “Sobre minha mãe (Zuzu), não tentamos mudar o atestado de óbito porque à época não havia essa possibilidade, e de toda forma nos parecia ser do conhecimento público que o acidente havia sido provocado pela ditadura. Mas continuaram sendo publicadas reportagens sobre a morte da minha mãe dizendo que ainda havia dúvida sobre a causa do acidente. Ora, àquela altura já era oficial a responsabilidade do Estado”, diz.
Incentivada por familiares de outras vítimas da repressão política, no final de 2018 Hildegard iniciou processo judicial para obter a certidão de óbito do irmão. Soube que também seria possível alterar a certidão de óbito da mãe.
“Quando a presidente da Comissão, Eugênia Gonzaga, foi afastada (pelo presidente Jair Bolsonaro, em agosto), achei que não iria conseguir o documento. Ainda bem que o processo já havia caminhado, estava na alçada do Ministério Público, e consegui a certidão e a mudança.”
Na certidão de óbito de Zuzu, onde se lia apenas “causa mortis: fratura de crâneo (sic) com hemorragia subdural e laceração cortical”, passou a constar “causa mortis: em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”. Essa mesma explicação consta como causa mortis de Stuart, no documento que oficializa sua morte.
Mortes: Stuart foi amarrado e arrastado por jipe
Campeão carioca de remo pelo Flamengo e estudante de Economia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Stuart integrava o grupo guerrilheiro Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em 14 de maio de 1971, aos 25 anos, Stuart foi capturado pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em Vila Isabel, na zona norte. Os agentes queriam informações que levassem ao ex-capitão Carlos Lamarca, um dissidente do Exército que aderira à luta armada contra a ditadura.
Levado à Base Aérea do Galeão, na zona norte, Stuart foi interrogado e torturado até a morte. Segundo testemunhas, foi arrastado amarrado a um jipe, com a boca junto ao escapamento. À época, o caso foi registrado oficialmente apenas como desaparecimento.
A mãe de Stuart, Zuzu Angel, passou a denunciar o assassinato do filho e a então suposta responsabilidade do Estado, além de reclamar o corpo, para que fosse sepultado. Como o pai de Stuart – Norman Jones – era norte-americano, e Zuzu, uma estilista prestigiada, sua denúncia repercutiu internacionalmente. Ela chegou a entregar ao então secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, um dossiê sobre a morte do filho.
Empenhada em denunciar o governo brasileiro, Zuzu passou a incomodar a ditadura. Na madrugada de 14 de abril de 1976 ela seguia sozinha de carro pela Estrada da Gávea, na zona sul, quando sofreu um suposto acidente e morreu, aos 54 anos. As circunstâncias do episódiocausaram a suspeita de que fosse um assassinato, mas a dúvida permaneceu por mais de duas décadas.
“Já vi livro de história dando outra versão para a morte de minha mãe, tentando tirar a responsabilidade da ditadura. Agora, com o documento oficial, vou cobrar a editora para que corrija a informação”, contou Hildegard.