PUBLICIDADE

Bolsonaro pode ser julgado em Haia? Caso das Filipinas indica que sim

Investigação aberta contra Duterte pode servir de jurisprudência para denúncia contra brasileiro, dizem juristas

PUBLICIDADE

Foto do author Julia Affonso
Por Julia Affonso
Atualização:

BRASÍLIA - A cúpula da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado, tem consultado juristas para evitar que a denúncia contra o presidente Jair Bolsonaro que pretendem levar ao Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia, nos Países Baixos, não tenha o mesmo destino de outras que já foram apresentadas, mas até agora nem sequer foram analisadas. Nas conversas, senadores ouviram que a abertura de investigação contra o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, pode servir de precedente para uma ação contra o brasileiro, mas para isso é preciso que os crimes estejam muito bem fundamentados.

O TPI costuma aceitar apenas o julgamento de crimes internacionaisconsiderados muito graves, incluindo genocídio, crimes de guerra e contra a humanidade. Seu tratado, o Estatuto de Roma, foi adotado a partir de julho de 1998 por mais de cem países, incluindo o Brasil. 

Senadores que integram a cúpula da CPI da Covid; relatório final da comissão deve ser encaminhado a Haia quando trabalho for concluído. Foto: Dida Sampaio/Estadão

PUBLICIDADE

Na prática, o Tribunal de Haia atua quando as cortes nacionais não conseguem ou não desejam realizar processos criminais. Sendo assim, a formação desse foro internacional geralmente se justifica como um último recurso e só atua se o processo não estiver sendo julgado por outro Estado.

Desde 2019, a corte internacional recebeu três comunicações contra Bolsonaro. Uma delas já foi arquivada. Outra está em análise preliminar e uma terceira ainda não teve resposta.

O Estadão apurou que já há um entendimento no "G7" - grupo majoritário da CPI - para que o relatório final seja encaminhado a Haia assim que a comissão finalizar os trabalhos, o que está previsto para novembro. Para isso, os senadores tiveram duas rodadas de conversas nas últimas semanas com juristas especializados em diversas áreas do Direito, como Internacional e Sanitário. 

Em entrevista ao Estadão, Sylvia Steiner, única juíza brasileira que já atuou na corte (2003-2016), disse acreditar que há “prova abundante” contra o chefe do Executivo. "As denúncias que foram encaminhadas ao TPI, foram três ou quatro, tratavam de um problema de má gestão da covid. Falava-se de incompetência, de um problema administrativo, de pessoas incompetentes que estavam gerindo mal uma crise sem precedentes", disse. " O que ficou demonstrado foi que o problema não era de má gestão. Porque má gestão e ignorância, infelizmente, não são crimes", completou ela. A ex-juíza assina o relatório de juristas coordenado por Miguel Reale Jr. que aponta sete crimes cometidos por Bolsonaro na pandemia, incluindo contra a humanidade.

"O desafio é fazer o tribunal olhar para um País que tem instituições democráticas, ainda que estejam sob ataque, como no atual momento", disse a advogada Eloísa Machado, professora da Fundação Getulio Vargas.

Publicidade

Na avaliação dos juristas consultados, porém, duas decisões recentes da corte internacional podem dar força à denúncia enviada pela CPI: as autorizações para abertura de investigação por crimes contra a humanidade cometidos pelo presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, em 15 de setembro, e sobre a atuação de tropas americanas e britânicas no Afeganistão, por crimes de guerra e contra a humanidade, no ano passado.

Essas investigações poderiam fortalecer apurações sobre crimes cometidos em "países em processo de erosão democrática", como o Brasil. Também no encontro com a CPI, a jurista Deisy Ventura, da Universidade de São Paulo (USP), disse que a investigação sobre o presidente das Filipinas "é um recado importante a governantes populistas extremistas que estão causando tanto dano à humanidade".

Duterte assumiu a presidência do país asiático em 2016 e promoveu uma violenta política de combate e caça a traficantes e usuários de drogas. A polícia matou milhares de pessoas, que, segundo a corporação, eram traficantes de drogas e resistiram à prisão. Grupos de direitos humanos afirmam que este número é muito maior e classificam a política como extermínio sistemático de usuário de drogas nas comunidades mais pobres. Durante a campanha à presidência em 2019, Duterte prometeu matar até 100 mil traficantes e viciados em drogas. “Eu sou o esquadrão da morte? Sim. Isso é verdade”, disse. 

As Filipinas foram um país-membro do tratado que criou o Tribunal de Haia até março de 2018, quando oficializaram sua saída. A retirada, porém, só começou a valer um ano depois. Por isso, a apuração contra Duterte na corte internacional foi aceita, mas vai focar em crimes cometidos entre 1º de novembro de 2011 e 16 de março de 2019.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

"Há uma base razoável para o procurador (de Haia) para proceder a investigação, no sentido de que o crime contra a humanidade de assassinato parece ter sido cometido, e esse (s) caso (s) potencial (is) decorrente (s) de tal investigação parece estar dentro da jurisdição do Tribunal", apontou o documento que autoriza a apuração do TPI.

Na avaliação de Machado, a chegada do advogado britânico Karim Kahn à chefia da Procuradoria do TPI, este ano, também pode favorecer uma eventual acusação dos senadores da CPI contra Bolsonaro. Parecer de juristas à CPI aponta que o presidente cometeu crime contra humanidade contra os indígenas pela falta de uma política de saúde para protegê-los da covid. "Temos a informação de que há uma vontade, uma diretriz do TPI, em enfrentar temas relacionados a povos originários na América Latina", afirmou a advogada.

As acusações são comunicadas em Haia por meio da Procuradoria do órgão, que funciona como uma espécie de Ministério Público e tem o poder de abrir investigações e apresentar denúncias ao órgão. Os juristas que falaram aos senadores foram unânimes em apontar que os processos em Haia são longos e levam anos para terminarem. Uma denúncia enviada por senadores, no entanto, adquiriria "um grau diferente" e teria um "enorme impacto" internacional e nacionalmente. Segundo eles, seria um "divisor de águas".

Publicidade

Além do TPI, o relatório final da CPI deverá ser enviado também à Procuradoria-Geral da República e a unidades do Ministério Público Federal para apuração de investigados sem prerrogativa de foro. Apesar de terem poder para investigar e decretar quebras de sigilo, CPIs não podem punir, explicou o advogado criminalista Sérgio Rosenthal ao Estadão. "A efetiva punição de eventuais culpados cabe exclusivamente ao Poder Judiciário, após o devido processo", afirmou.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.