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Bastidores: Ernesto Araújo dorme prestigiado e acorda fritado

Demissão foi ‘lançada’ por Mourão mesmo após chanceler participar de cerimônia, na véspera, com Bolsonaro

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Por Felipe Frazão
Atualização:

BRASÍLIA – O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, dormiu prestigiado pelo presidente Jair Bolsonaro e acordou com a cabeça a prêmio, “fritado” (no linguajar político) pelo vice-presidente Hamilton Mourão. Cogitada há meses, a demissão do chanceler foi lançada pelo general como passo do governo num futuro próximo, passada a eleição interna no Congresso, marcada para a próxima segunda-feira.

Antes de falar no Fórum Econômico Mundial para tentar limpar a imagem do País perante a nata do PIB mundial, Mourão citou nesta quarta-feira, 27, o ministro das Relações Exteriores como um dos possíveis demitidos na reforma ministerial que deverá acomodar a “nova composição política do governo”. “Talvez, nisso aí, alguns ministros sejam trocados, entre eles o próprio MRE (Ministério das Relações Exteriores). No caso específico das Relações Exteriores, é algo que fica na alçada do presidente”, afirmou Mourão, em entrevista à rádio Bandeirantes.

O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo Foto: Antonia Lacerda/EFE

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Mourão foi a primeira autoridade do governo a falar abertamente sobre o plano de demissão de Araújo. O vice reclama de ser cada vez menos ouvido por Bolsonaro e seus gabinetes trabalham sem coordenação, ao menos em matéria de política internacional. Mas Mourão não fala apenas por si. Ele vocalizou o apetite político do Centrão, grupo aliado em que Bolsonaro aposta para vencer a eleição da Câmara e no Senado e blindar seu mandato. No Palácio do Planalto, outros auxiliares do presidente já discutiram a substituição e, reservadamente, especularam nomes de substitutos, entre diplomatas e políticos. Araújo desagrada o meio militar desde o início do governo, quando generais palacianos recebiam embaixadores e tutelavam a condução da diplomacia.

A troca tem apoio de setores econômicos, como os ruralistas, parlamentares, acadêmicos e embaixadores aposentados. No Itamaraty, até diplomatas da ativa e em início de carreira perderam a inibição de comentar nos corredores a demissão. Por temerem retaliações, eles falam apenas sob anonimato e avaliam que, embora haja nomes experientes em alta conta com o discurso de Bolsonaro, como Maria Nazareth Farani Azevêdo e Luís Fernando Serra, cairia bem um político para dar à chancelaria a liberdade e a desenvoltura que Araújo demonstrou não ter.

O calendário que sugerem coincide com o do vice. A substituição ocorreria após as eleições na Câmara e no Senado, foco principal do governo, e algum tempo depois da posse de Joe Biden como presidente nos Estados Unidos. Seria uma forma de desvincular os episódios e de não parecer que Bolsonaro faz uma concessão ao democrata. O timing, porém, contrasta com atitudes recentes do presidente. Na noite de terça-feira, dia 26, o chanceler e sua mulher, a diplomata Maria Eduarda de Seixas Corrêa, sentaram-se à mesa presidencial na celebração do 72.º Dia da República da Índia. O país asiático é o novo queridinho de Bolsonaro por ter liberado, com atraso, a exportação de 2 milhões de vacinas AstraZeneca/Oxford contra a covid-19, fabricadas em laboratório indiano. A vacina é uma das apostas do governo para reduzir a pressão contra o impeachment.

O casal diplomático dividiu a mesa com Bolsonaro e a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, o ministro da Casa Civil, general Braga Netto, e a mulher, Kathya Braga Netto. Além deles, só os anfitriões do convescote, o embaixador indiano, Suresh Reddy, e a embaixatriz, Sneha Reddy.

“Ouso dizer que o Brasil cada vez mais fortalece suas relações exteriores, nos projetando num cenário de muita prosperidade para esses países e para nós”, disse Bolsonaro ao lado de Araújo na recepção concorrida entre ministros e diplomatas no Clube Naval. O chanceler depois cumprimentou convidados e conversou de pé com outros expoentes ideológicos do governo, como Filipe Martins, assessor internacional do Palácio do Planalto, e o diplomata Roberto Goidanich, presidente da Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao Itamaraty.

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Na quinta-feira passada, mais um sinal de prestígio às gestões diplomáticas. Bolsonaro escalou o chanceler para ir pessoalmente receber e ciceronear, com o embaixador Reddy, e os ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Fábio Faria (Comunicações), o lote de vacinas enviadas pela Índia nos aeroportos de Guarulhos (SP) e do Galeão (RJ). Também convidou o ministro para aparecer na live semanal, momento em que fortaleceu sua atuação, ao citar a política externa como “excepcional”. 

“Quem demite ministro sou eu”, afirmou Bolsonaro, rechaçando a especulação de que a China teria cobrado sua demissão, algo considerado improvável e inaceitável por diplomatas de todos os lados. Em verdade, parlamentares com trânsito na embaixada chinesa, como Fausto Pinato (PP-SP), cobram há meses a saída de Araújo, ecoando a insatisfação de Pequim. Além do atraso na vacina da Índia, Araújo foi questionado nas últimas semanas pelos percalços em conseguir a liberação de insumos chineses para produção de vacinas no Brasil, pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan. 

O governo Bolsonaro disputou o protagonismo na negociação e liberação com o governador João Doria (PSDB), de São Paulo. Doria disse que o empenho foi das autoridades estaduais e chamou Bolsonaro de “parasita”. Secretários do Itamaraty afirmam, porém, que a rede diplomática estava envolvida nos trâmites desde dezembro do ano passado, a pedido da Anvisa. Eles dizem que nunca houve problema político afetando a relação com a China, mas sim de burocracias chinesas para importação e que a embaixada em Pequim atuou ativamente para conseguir os insumos.

O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, participou do Fórum Econômico Mundial. Foto: GABRIELA BILO / ESTADAO

O presidente, mais uma vez, usou as redes sociais para elogiar e fortalecer Araújo, que possui pouca interlocução com os chineses e chegou a ser isolado de conversas. Em defesa dele, auxiliares ponderam que, na praxe diplomática, o chanceler costuma se relacionar com governos estrangeiros, cujos representantes em Brasília têm liberdade e credenciais para lidar diretamente com os demais ministros e autoridades do governo brasileiro. Dessa forma, Araújo não participaria de algumas negociações, nem atenderia com frequência a todos os embaixadores estrangeiros. Ele, no entanto, sempre prestigiou embaixadores que representam presidentes alinhados a Bolsonaro.

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Outra operação mal sucedida foi o pedido de ajuda para o abastecimento de oxigênio no Amazonas. O empréstimo de aviões cargueiros militares dos EUA e de remessa de oxigênio hospitalar não prosperou. Houve apelos diplomáticos em Brasília e Washington, além de um telefonema de Ernesto Araújo ao então secretário de Estado Mike Pompeo, já fora do cargo com a saída de Trump. Chegou primeiro o socorro liberado pela Venezuela, onde a empresa fornecedora White Martins localizou uma carga disponível. O regime do presidente Nicolás Maduro, com quem Bolsonaro não mantém relações, liberou o apoio, o que gerou um constrangimento ao Planalto.

A demissão de Ernesto Araújo tem um custo para o presidente. Ao desalojá-lo do Palácio Itamaraty, Bolsonaro corre risco de desapontar apoiadores radicais que veem no embaixador um dos últimos ministros olavistas da Esplanada. Ele é cada vez mais popular nesses grupos nas redes sociais e difunde discursos que caem no gosto da nova direita conservadora. A militância reclamou da demissão a contragosto do ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub. Exonerado por disparar ameaças contra ministros do Supremo, ele ganhou uma saída honrosa ao ser indicado para cargo no Banco Mundial.

O chanceler deu palanque a blogueiros e youtubers bolsonaristas, que ganharam espaço e divulgação oficial por meio de seminários e debates promovidos pela Fundação Alexandre de Gusmão. “O legado do Barão (do Rio Branco, patrono da diplomacia) está bem guardado: soberania, segurança, grandeza da nação. Só estamos ameaçando o legado da política terceiro mundista, muito ‘pragmática’ em financiar tiranos e facilitar criminosos, obsequiosa ao multilateralismo antinacional, desdenhosa do povo brasileiro”, escreveu o chanceler, em recado há três dias.

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Atritos com embaixador chinês

Araújo ficou marcado ainda por se indispor com o embaixador chinês, Yang Wanming, ao intervir em atritos criados por comentários entendidos como ofensivos do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente. Araújo não questionou Eduardo e repreendeu o chinês. Em textos, o ministro também classificou o ex-presidente Donald Trump como potencial “salvador” do Ocidente e usou o termo “comunavírus”, numa referência que ecoou as acusações de negligência de Pequim e especulações sem prova de que o vírus teria sido criado e ocultado pelo Partido Comunista Chinês.

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A manutenção de Araújo, por outro lado, se torna mais cara com mudança na Casa Branca, onde é visto como “trumpista”. A divergência com o discurso de Biden é evidente. Enquanto o presidente norte-americano condenou a invasão do Capitólio por “terroristas domésticos”, como chamou extremistas incitados por Trump, o chanceler brasileiro lamentou as mortes de 6 de janeiro, mas escolheu outras palavras. Falou em “cidadãos de bem” e cogitou a hipótese de haver elementos “infiltrados”. Para ele, parte do povo americano se sentiu “agredida e traída pela classe política”.

O embaixador Todd Chapman, dos Estados Unidos, mudou o tom com a derrota de Trump e, num recado ao Palácio e ao Itamaraty, pediu “atenção às palavras” nas comunicações entre Bolsonaro e o gabinete democrata de Joe Biden. Com trânsito livre no governo brasileiro, ele também falou em “respeito” e pediu adesão à realidade. Questionado sobre a narrativa de fraude eleitoral nos EUA endossada por Bolsonaro, respondeu em conversa com jornalistas que não é correto espalhar informações falsas.

O chanceler tem promovido algumas moderações para ganhar sobrevida. Um exemplo foi a carta em tom diplomático enviada por Bolsonaro a Biden. Os americanos entenderam o tom da missiva como “construtivo”, mas cobram avanços concretos em questões de atrito, como a política do meio ambiente. Diplomatas ponderam que Araújo é profissional de carreira e, como tal, está acostumado a transições de governo, podendo moldar o discurso e se adaptar às circunstâncias políticas. Além disso, fez carreira ligado a temas de EUA, serviu no país e conhece a política de Washington. 

Na última sexta-feira, Araújo disse ao SBT sentir-se feliz e tranquilo no cargo. “Abundam fake news de maneira impressionante em Brasília”, respondeu, quando indagado sobre sua demissão. Afirmou que Bolsonaro lhe dá segurança desde o primeiro dia no cargo e confia no seu trabalho. Aproveitou para se colocar como capaz de permanecer à frente do Itamaraty, dizendo ter “condições de implementar a política externa que o presidente quer”.

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