Auto dos compadecidos

PUBLICIDADE

Por Dora Kramer e dora.kramer@grupoestado.com.br
Atualização:

Como dizem os repórteres de televisão às vésperas de grandes acontecimentos, está tudo pronto. Pronto para Renan Calheiros ser absolvido no plenário do Senado e, desta vez, definitivamente. Passando por essa, provavelmente na semana que vem, entrega a presidência e se salva de vez. O processo de negócios suspeitos com a Schincariol morreu quarta-feira no Conselho de Ética. A representação por ato de espionagem contra senadores está suspensa pela Mesa. A acusação de comandar um esquema de coleta de propinas em ministérios comandados pelo PMDB está na mão do advogado de defesa, Almeida Lima. Portanto, só resta o parecer do senador Jefferson Péres, aprovado por 11 a 3 quarta-feira no Conselho de Ética, pedindo a cassação do mandato com base em sete indícios de que o presidente licenciado do Senado quebrou o decoro parlamentar ao participar de sociedade em duas rádios e um jornal por meio de testas de ferro. É considerado o processo mais grave e consistente, mas há uma série de "senões" que se prestam perfeitamente à absolvição: o voto secreto, a poeira baixa da opinião pública, as luzes mais fortes voltadas para a CMPF e a tendência da maioria de achar que a presença discreta de Renan Calheiros na Casa salva a pátria do Senado e o argumento fatal da compaixão: 15 anos fora da vida pública seria uma pena excessiva para quem já perdeu a presidência do Senado e a reputação. No plenário há forte tendência de não se repetir o rigor da última reunião do Conselho de Ética, uma espécie de ato de contrição dos partidos junto à população. À exceção do PMDB, que votou contra a condenação, todos partidos ali representados deram a sua satisfação ao público, inclusive o PT com dois votos a favor do relatório. A tropa de choque de Renan Calheiros atuou no figurino da preparação de um bom (para ele) desfecho no plenário. De um lado, Wellington Salgado abriu mão do pedido de vistas para não irritar os colegas com manobras protelatórias antes usadas ao limite do abuso. De outro, Almeida Lima fez o discurso da pena excessiva, que numa outra ocasião serviu para que os senadores não levassem adiante uma investigação contra Antônio Carlos Magalhães por causa de umas escutas ilegais na Bahia. Os senadores, pensando obviamente no efeito "eu posso ser você amanhã", são muito sensíveis a esse tipo de argumentação. Eles precisavam dar uma satisfação à opinião pública, limpar a imagem do Senado. Ora, não deverá causar a menor surpresa se a maioria considerar o serviço feito com o afastamento de Renan Calheiros da presidência. Afinal, ele já não representará a Casa e, se ficar quieto no canto dele sem a pretensão de recuperar fama e prestígio, não causará maiores (nem menores) transtornos. Ficará relegado a um plano inferior no Parlamento, sem visibilidade, mas continuará atuando nos bastidores. Exatamente como faz, por exemplo, o deputado Jader Barbalho, que voltou depois de renunciar, ser preso e de novo eleito no Pará. Há um outro indicador: não se ouve nenhum senador dizer que Calheiros não pode mais continuar no Senado; dizem que ele perdeu a condição política de permanecer "à frente" do Senado. No ritmo em que anda a carruagem está com todo jeito de prevalecer na votação o sentimento de que Renan Calheiros já pagou por seus "erros" e não merece a pena capital. O leitor pode anotar e conferir o teor dos discursos na sessão do próximo dia 22. O senador Jefferson Péres, logo após a aprovação de seu relatório, declarou: "Já fiz minha parte; que o Senado faça a sua." Tudo indica que fará. Modo de pensar O presidente Lula contribuiu a seu modo para o registro da Proclamação da República, falando, nos jornais de ontem, sobre sistemas de governo e poder. Defendia de novo a tese da injustiça das críticas a governantes (falando de Hugo Chávez) resistentes ao princípio da alternância - "ninguém reclama de a Margareth Thatcher ter ficado 11 anos como primeira-ministra da Inglaterra" - quando foi lembrado de que discorria sobre situações distintas. "Distintas por quê? É continuidade. Não tem nada de distinto. Muda apenas o sistema. Muda apenas de regime parlamentarista para presidencialista. Mas o que importa não é o regime, é o exercício do poder." Uma pessoa que não vê diferença entre Parlamentarismo e Presidencialismo não distingue Monarquia de República, não discerne democracia de ditadura. Ninguém mais cobra porque as pessoas se acostumaram com a falta de compromisso de Lula com o que diz. Mas, se fosse convidado a se explicar, ele diria que não disse o que disse: não interessa a forma, o fundamental é o exercício do poder. Portanto, todos os regimes e sistemas são iguais. A declaração, ao contrário do que parece, não denota ignorância, é, antes, um modo de ver as coisas.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.