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A lei? Ora, a lei...

Por Dora Kramer
Atualização:

Quando estourou o escândalo das mordomias no Parlamento britânico, a crise dos abusos nos privilégios no Parlamento brasileiro estava no auge e as comparações foram inevitáveis. Dois pontos chamaram atenção: a semelhança da natureza dos desvios e a diferença no trato da questão. O primeiro mostrava que gente civilizada também prevarica. Em tese, nos colocava ombro a ombro com os costumes do Primeiro Mundo. Mas, o segundo derrubava o argumento, demonstrando a distância existente entre o Brasil e a Inglaterra no tocante à cultura sobre o manejo da coisa pública. Resumindo, a disparidade evidenciou-se na consequência. Lá, caiu o presidente do equivalente local à Câmara dos Deputados, o primeiro-ministro condenou liminarmente as práticas, não obstante terem sido cometidas por seus aliados, e as pesquisas de opinião de imediato registraram o repúdio do público ao partido envolvido no escândalo. Michael Martin, o similar inglês de Michel Temer, renunciou ao cargo. Não porque fosse acusado. Nenhuma das denúncias o envolveu, mas retirou-se de cena porque havia sido contrário à divulgação das informações sobre os privilégios em vigor no "clube privado de cavalheiros", tal como o primeiro-ministro Gordon Brown definiu a Câmara dos Comuns. Aqui, suas excelências tentaram resistir - com o aval dos presidentes da Câmara e do Senado -, justificando a legalidade das irregularidades, o presidente da República considerou uma "hipocrisia" a críticas aos abusos - aproveitando para confessar seus próprios desvios quando parlamentar -, as infrações foram todas anistiadas, a popularidade do presidente permaneceu intacta e as transgressões continuaram a ser reveladas. No caso das passagens, o presidente da Câmara teve culpa (confessada) no cartório. No que tange aos privilégios abusivos, o presidente do Senado achou normal - e assim passou a ser considerado no geral - usar seguranças da instituição para vigiar suas propriedades no Maranhão. Algum constrangimento, alguma concessão ao pudor? Nada. Só uma história de bastidor revelando que o presidente do Senado, José Sarney, cogitara da renúncia ao cargo em conversa com amigos. Não por vergonha das agressões individuais e coletivas às normas da boa conduta, mas por se achar injustamente atingido na majestade pretendida. Caminhava o escândalo das mordomias no Parlamento brasileiro para o confortável limbo do esquecimento, quando a Folha de S. Paulo noticia que o pagamento ao auxílio-moradia aos senadores não tem sustentação legal. A autorização desses pagamentos fora cancelada seis anos antes e, mesmo assim, o dinheiro continuou a ser religiosamente depositado nas contas dos senadores. Inclusive nas contas daqueles que têm moradia própria em Brasília e, por óbvio, não precisariam de tal benefício. Entre os agraciados de maneira duplamente irregular com R$ 3.800 por mês estava ninguém menos que o presidente do Senado. Fiel à regra vigente, primeiro negou e, uma vez, exposto, confirmou. Não sabia como o dinheiro fora parar em sua conta, uma vez que não havia requerido o pagamento do auxílio. Detectado o equívoco, pediu desculpas e ordenou a devolução. E o vácuo, o período em que todos os benefícios foram pagos sem sustentação em regra alguma? Rapidamente deu-se um jeito. Criou-se uma nova norma autorizando os pagamentos e atribuiu-se o passado à conta do equívoco para justificar nova anistia. Ninguém procurou saber por que houve a suspensão dos pagamentos há seis anos. A fim de não suscitar mais polêmica, convencionou-se que houve "erro burocrático". Mas será que houve mesmo? Ou na época aquela regra foi revogada em função de alguma denúncia sobre irregularidades na concessão dos auxílios-moradia? No mínimo, seria necessário conferir. Nada impede de acontecer o mesmo com algumas normas alteradas em virtude da recente crise. Amanhã, numa próxima legislatura, quando suas causas se perderem na memória nacional, podem causar espanto e, para ajeitar a situação conveniente ao momento, ser recuperadas tal qual o modelo anterior. Suposição? Não, mera constatação da realidade. No Brasil, diferentemente do que ocorre em nações de costumes mais civilizados, quando a legislação provoca qualquer abalo nos interesses de quem tem poder ou influência institucional, muda-se a legislação de forma satisfazer os interesses anteriormente contrariados. Talvez seja esse o ponto que separe os escândalos dos Parlamentos no Brasil e na Inglaterra. Lá, suas excelências dobraram-se envergonhadas aos ditames lei. Aqui, correm sem pejo para alterar os princípios da lei. Isso responde, por exemplo, a uma questão aparentemente inusitada sobre o que há em comum entre o caso do auxílio-moradia e as mudanças na Lei Eleitoral propostas para, entre outras coisas, revogar a fidelidade partidária interpretada pelo Supremo Tribunal Federal conforme o que impõe a Constituição.

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