'A direita da USP era mais feroz que os militares'

FHC foi entrevistado sobre a política na universidade; a seguir, trecho da entrevista/depoimento à comissão

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Por Fernando Henrique Cardoso
Atualização:

Como o senhor se tornou professor da USP?

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Tornei-me professor da USP após o reitor Ernesto Leme ter me dado uma autorização especial para eu dar aula, porque não era formado. Eu fui professor da USP antes de terminar o curso de Sociologia. Não podia dar aulas porque não era formado, mas o Ernesto Leme me autorizou, sob o fundamento de que faltava apenas a licenciatura, que era o último ano da faculdade. Comecei a dar aulas de História Econômica da Europa, a pedido da professora Alice Canabrava. Era um assunto novo para mim, mas eu já tinha lido Weber, Marx, essas coisas. Li também uns livros em inglês sugeridos pela professora.

O senhor pode nos contar um pouco mais sobre o papel da Universidade na vida política brasileira?

A Universidade de São Paulo tinha um papel bastante expressivo na sociedade paulista. Veja que a USP foi fundada porque São Paulo perdeu a Revolução de 32 e a elite paulista voltou-se para a cultura, fazendo várias coisas importantes. A mais importante delas foi a fundação da USP. A ideia era formar uma elite ilustrada e, se possível, recuperar o poder. O primeiro a recuperar o poder fui eu, só que não foi do lado deles. Mas é interessante ver que a própria ideia da USP nasceu num contexto político-social. A USP tratou de recrutar professores europeus. Na Sociologia e Ciências Humanas, recrutaram-se professores franceses; na Química, eram alemães; na Física, italianos. Tiveram sorte de pegar gente jovem e precursora, como Lévi-Strauss e Braudel. Nas faculdades da USP, predominavam ideologias diferentes. A Filosofia era mais de esquerda, mais aberta. A Medicina era muito conservadora. O Junqueira, por exemplo. Mas tinha o pessoal de Parasitologia, que era da esquerda. A faculdade politicamente mais importante era a de Direito. Na Filosofia, também tinha gente bem conservadora. Sabe quem era bem conservador? Aziz Ab'Saber. Depois, mudou. Eu sei disso porque, quando veio o golpe, eu estava no Conselho Universitário.

A maior parte dos professores não tinha militância política; eu era dos raros que tinha tido, mas era raro. O Florestan Fernandes, que foi meu professor, naquela época não tinha militância. O Antonio Candido tinha. Tinha sido do Partido Socialista. O Schenberg era comunista e tinha sido deputado em certa altura. A Faculdade de Filosofia costumava se manifestar politicamente nos jornais por meio da Congregação da Faculdade. Fazia manifestos ao povo e ao governo. Isso, principalmente, no período de Jânio Quadros.

(...)

O Gama (e Silva) não tinha nada de autoritário, mas virou um ferrabrás quando ministro. Fez aquela coisa do AI-5. O Gama se recusou a me dar autorização para eu sair do Brasil. Então, eu perdi o lugar na USP porque saí sem autorização.

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(..)

Esse pessoal da direita da USP é responsável direto por conivência, ação e omissão. Se você for ver a Comissão Interna da USP, eles eram mais ferozes que os militares, eles pediam a nossa cabeça. Quem mandava na USP era Medicina, Direito e Politécnica. O Direito, com proeminência nacional. A Economia era um apêndice da Faculdade de Direito, até que o Delfim fez uma mudança positiva. Virou uma coisa mais técnica, mas não tinha expressão maior. A Filosofia tinha expressão verbal, mais retórica. Nenhum deles tinha real noção das coisas políticas. Era tudo muito vago. Eu estava mais ligado à vida prática do País, mas era um acadêmico. Do grupo que estudou O capital , quem tinha experiência de política, militância, era eu e o Paulo Singer.

Já em 1968, com o Ato Institucional n° 5, o senhor foi cassado e, com isso, aposentado compulsoriamente. Qual foi o impacto sobre sua carreira, e mesmo sobre a Universidade?

Um pouco antes das cassações, veio o concurso de cátedra. Em seguida, me cassaram. Eu ganhei a cátedra em outubro e me cassaram em abril . Eu fui um professor catedrático que nunca pôde assumir o cargo. Mas, a essa altura, eu já tinha experiência internacional, no Chile, e já tinha sido professor da França. Eu tinha outra visão do mundo, tinha uma visão um pouco mais complicada do que estava acontecendo no mundo.

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Era difícil... Quando eu fui aposentado compulsoriamente, pelo AI-5, perdi o direito de dar aulas, e havia uma série de restrições. Ao pé da letra, nem mesmo pesquisa a gente podia fazer. Isso tudo 52 era um absurdo. Qual foi a nossa posição? Primeiro, você resolve a solidariedade aos perseguidos. Aí nós tomamos a decisão, alguns de nós - como eu já tinha estado fora -, de não voltar para o exterior. Não podia. Fui convidado para Yale e para voltar pra Paris. Eu achei que não, que era melhor ficar aqui.

Qual papel político pode ser atribuído à Universidade hoje?

Em termos mais genéricos, é o seguinte: toda nossa visão, nossa cabeça, nossos conceitos estavam baseados num mundo que está mudando. Qual era o mundo nosso? Era o mundo da industrialização, das classes estruturadas, dos partidos que respondiam, grosso modo, às classes e às ideologias. Com o mundo de hoje, o mundo da globalização, você tem tanta mobilidade social, tanta ocupação nova que a expressão da classe trabalhadora, enquanto tal, diminuiu gradativamente. A coesão de classes não existe mais. E, no nosso caso atual, tem a fragmentação dos partidos. Tem a fragmentação da sociedade e a fragmentação dos partidos. E uma não bate com a outra. Então, estamos vivendo um momento em que você não tem centro de gravidade. É difícil entender qual a dinâmica dessa situação. Quando você não tem centro de gravidade, a narrativa ganha força. É preciso uma estrutura para suportar, mas não tem. Daí a ideologia prevalece sobre a realidade. A Universidade, hoje, não tem um discurso. Não é que a Universidade, em sua função técnica, não tenha importância e não tenha melhorado. Melhorou muito. A função do intelectual é que é o problema. A Universidade ficou para trás, ela não captou essas mudanças. É novo isso, e isso desorienta. É preciso teorizar sobre essa realidade.

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*Ex-presidente da República

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