A arte da crise

Por Dora Kramer e dora.kramer@grupoestado.com.br
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Dos ex-presidentes José Sarney e Fernando Henrique Cardoso dizia-se que, quando estavam no poder, as crises entravam fortes e saiam fracas do Palácio do Planalto. Há políticos assim, com inclinação para apaziguar ânimos e reduzir danos. Da geração atual, Aécio Neves é o carro-chefe do grupo. Já o presidente Luiz Inácio da Silva comanda a ala vocacionada à sublevação, forjada no enfrentamento e acostumada ao conflito. Ciro Gomes pertence a ela. Isso não quer dizer que os amenos sejam melhores que os intensos ou vice-versa. Há, porém, uma situação em que os primeiros tendem a levar vantagem: na administração de crises. É rara - para não dizer inexistente - a ocasião em que o governo Lula se põe como bombeiro diante do fogo. Em geral, faz o papel do incendiário e termina por se queimar. Mas aos petistas parece escapar essa evidência. Ultimamente andam reclamando que as crises do PSDB ficam pouco tempo em cartaz no noticiário, mas qualquer confusão envolvendo o PT tem longa duração. Acusam a imprensa de tratar tucanos a pires de leite e petistas a golpes de facão. Como exemplo, citam os gastos com os cartões corporativos do governo José Serra. "Sumiram como que por encanto dos jornais", queixa-se um senador reproduzindo a voz corrente no partido. A reclamação ignora os procedimentos. O governo de São Paulo não brigou com a notícia sobre os excessos nas despesas. Contestou, mostrou os dados, anunciou umas correções, administrou a maioria na Assembléia para esvaziar a proposta de CPI e em pouco tempo até o PT se desinteressou do caso. Já o governo federal, diante de problema de natureza semelhante, foi à guerra. Negou evidências que foi obrigado a reconhecer, defendeu quem precisou demitir, apontou conspirações, incentivou a CPI para em seguida interditar as investigações e teve a genial idéia de produzir um dossiê para intimidar a oposição. Ou seja, enquanto um atua para desmontar a bomba, o outro aciona o botão do explosivo. Uma reflexão racional sobre o tema ajudaria a consertar a enviesada premissa, que resulta no equívoco da conclusão: a de que a imprensa protege a oposição enquanto se dedica ao esporte de azucrinar o governo. Não é fato a alegada indiferença em relação às crises do tucanato. Nos primeiros três meses de 2006, o noticiário foi quase todo ocupado pela briga de foice em torno da escolha do candidato à Presidência da República. Nos meses seguintes, as divergências e deficiências da campanha de Geraldo Alckmin estiveram no centro da cena. Só deixaram a berlinda quando apareceu o dossiê dos aloprados, uma produção governista. Ao longo dos últimos anos há vários e recorrentes exemplos. Quanto mais se sentem fortalecidos, mais o presidente e o PT partem para o confronto, terreno fértil para o passo em falso. Agora mesmo, antes de aparecer o dossiê com os gastos de Fernando Henrique, o centro do debate político era a desgastante briga dos tucanos e democratas por causa da Prefeitura de São Paulo. Na verdade, já haviam saído da cena principal quando o presidente resolveu subir nos palanques e, no auge da ousadia, antecipar o processo eleitoral em dois anos e meio. Lançou a candidatura de Dilma Rousseff como um factóide para não esvaziar politicamente o segundo mandato e acabou incinerando a imagem não da candidata, mas da ministra da Casa Civil. E assim a crise dos cartões entrou anã e saiu gigante do Palácio do Planalto. Chance perdida O cavalo passou selado e cheio de boas intenções pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, mas suas excelências prefeririam se atrelar ao mau combate. Derrubaram a proposta de acabar com os suplentes sem voto. Impuseram algumas restrições à suplência, mas mantiveram a deformação central: a figura do biônico numa Casa de representação popular. O Legislativo reclama que o Executivo interdita sua pauta com medidas provisórias, mas quando cabe a ele a iniciativa da agenda, o corporativismo se impõe e diz adeus às ilusões. De Pirro Os estudantes da UnB venceram. Ocuparam a reitoria e conseguiram o afastamento de Thimoty Mulholland. Na base da força. Assim como ocorria quando a transgressão do MST era socialmente aceita porque seus fins alegadamente justificavam os meios, há quem aprove os métodos dos estudantes em nome da punição ao reitor infrator. A violação de direitos alheios pode ser o caminho mais curto até a vitória. Mas é também um atalho para outras derrotas. O vale-tudo um dia pega a caça, mas no outro alcança o caçador. Tome-se a manufatura de dossiês como método subterrâneo de luta política. O PT inaugurou a prática, com ela chegou fácil a algumas vitórias, mas por causa dela amarga a derrota da credibilidade.

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