40 anos da Guerra das Malvinas: governo britânico ameaçou Brasil em razão da crise do Vulcan

País reteve bombardeiro inglês que entrou no espaço aéreo brasileiro durante a guerra; britânicos queriam liberação da aeronave que voltava de missão de bombardeio às tropas argentinas nas Malvinas

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Por Marcelo Godoy e Wilson Tosta
4 min de leitura

O governo do Reino Unido pressionou duramente o Brasil a liberar o seu bombardeiro Vulcan que invadiu o espaço aéreo brasileiro e foi interceptado pela Força Aérea Brasileira em 3 junho de 1982, apontam documentos sobre a Guerra das Malvinas guardados no Arquivo Nacional. Houve conversas em Brasília e em Londres, nas quais os britânicos pediram que o caso fosse tratado do ponto de vista político, visando à manutenção das boas relações entre os dois países, não do direito internacional.

O caso envolvia questões complexas. Não havia, do ponto de vista jurídico, uma guerra declarada, e o governo brasileiro, embora defendesse uma solução negociada para o conflito, não era neutro. Permitia a venda de armas brasileiras à Argentina e enfrentava acusações - que negava - de fingir que não via a passagem de armamento líbio por território nacional, com destino ao governo de Buenos Aires.

O Vulcan pousou no Galeão após falha no reabastecimento em voo; ele carregava um míssil antirradar Shrike, que foi retido. Foto: ARQUIVO AE

“b) de um ponto de vista político e diplomático, o governo brasileiro tem dado apoio à Argentina e, inclusive, lhe tem permitido adquirir armamento de produção nacional, o que está de acordo com a resolução adotada pela XX Reunião do Órgão de Consulta do TIAR”, diz, em despacho “Secreto-Exclusivo” de 8 de junho de 1982, dirigido ao presidente João Figueiredo, o ministro das Relações Exteriores, Ramiro Saraiva Guerreiro. “c) a Argentina pediu fossem aplicadas ao bombardeiro Vulcan as regras de neutralidade estrita, que, note-se, no caso de aeronaves não são inteiramente claras por falta de convenção vigente. Se atendêssemos ao pedido argentino, a Grã-Bretanha poderia exigir-nos a aplicação do estatuto de neutralidade também em relação à Argentina, o que seria incompatível com as diversas formas de apoio que temos dado ao nosso vizinho.”

Na correspondência guardada no Arquivo Nacional, Saraiva Guerreiro lembra que a Argentina pediu “verbalmente” que o Brasil “pelo menos atrasasse” a entrega do avião, embora “a nota que nos foi passada evidentemente não mencionasse essa hipótese”. A aeronave da Royal Air Force foi interceptada por dois caças F5-E, que partiram da Base Aérea de Santa Cruz. O Vulcan fora detectado no radar a 340 quilômetros do Rio, em espaço aéreo do Brasil, sem autorização. Vinha de uma missão nas Malvinas, de volta para a base na Ilha da Ascensão, no Atlântico Sul. Trazia um míssil não disparado. Sua tripulação de seis tripulantes pediu pouso de emergência. Foi escoltado até a Base Aérea do Galeão.

Inicialmente, o Brasil anunciou que desarmaria a aeronave e a liberaria, mas, diante do pedido informal dos argentinos, resolveu retê-la. Os britânicos reagiram, com contatos diplomáticos na capital britânica e no Distrito Federal e um documento encaminhado ao governo brasileiro.

“O governo de Sua Majestade Britânica ficou surpreso e desapontado ao tomar conhecimento da decisão do governo brasileiro no sentido de retardar a partida da aeronave Vulcan retida na Base Aérea do Galeão, a despeito da decisão, anunciada na quinta-feira, 3 de junho, pelo Ministro da Aeronáutica, de permitir o regresso do avião à sua Base, desde que totalmente desarmado”, afirma documento entregue pelos britânicos aos brasileiros.

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O documento, no original em inglês e na tradução para o português, está anexado ao despacho de Saraiva Guerreiro para Figueiredo. Em seu último parágrafo, faz uma ameaça: “O governo de Sua Majestade Britânica lamenta ter que deixar claro ao governo brasileiro que a reversão da decisão anunciada em 3 de junho, se mantida, acarretaria sérias consequências para as amistosas relações de que a Grã-Bretanha e o Brasil tem desfrutado ininterruptamente há tanto tempo e às quais atribui grande valor.”

O militar e político, general de Exército João Batista de Oliveira Figueiredo,então Presidente do Brasil, visto durante apresentação da Esquadrilha da Fumaça em Pirassununga, no interior de São Paulo, em 1983. Foto: W. PADOVANI/ESTADÃO CONTEÚDO/AE/

Guerreiro então fez suas sugestões para Figueiredo. “Nessas condições, sugiro a Vossa Excelência: a) reter o armamento transportado pelo avião Vulcan, cuja presença no Brasil foi permitida por razões exclusivamente humanitárias, até o final do conflito (dessa forma se daria alguma satisfação à Argentina); b) restituir o bombardeiro Vulcan, mediante compromisso escrito inglês de que não mais o utilizará em operações bélicas durante o presente conflito nas Malvinas (por um lado se atenderia à solicitação inglesa, aproveitando fórmula proposta ao Embaixador em Londres, por outro, o decurso do tempo entre a chegada do avião ao Brasil e sua liberação, assim como as condições em que a mesma seria realizada, dariam alguma margem de satisfação à Argentina); c) seria o governo britânico informado de que a decisão em apreço e de caráter puramente prático não constituindo precedente jurídico, esperando o governo brasileiro que o episódio não se repita; d) seria, igualmente, o governo inglês informado de que, no interesse da manutenção das relações amistosas entre os dois países, o governo brasileiro decidira não levar em consideração os termos do último parágrafo do ‘papel’ que o Embaixador inglês deixou comigo no sábado, por considerar que o mesmo contém um tipo de insinuação desnecessária e desproporcional; e) o governo argentino seria previamente informado da decisão brasileira quanto ao Vulcan; f) com relação ao trânsito de armamentos, seria repetido ao governo inglês que o governo brasileiro procurará desencorajá-lo, sem, porém, fazer nada de dramático, tendo em vista que Brasil não se juntou ao embargo de armas imposto à Argentina e que o Reino Unido continua ‘a suprir-se de armas junto a países ocidentais’. O Governo argentino seria informado do interesse brasileiro em evitar-se o trânsito de armas pelo Brasil.”

O avião decolou com sua tripulação para a Inglaterra no dia 10 de junho.

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