Roberto DaMatta: ‘A classe média foi afastada da política’

Antropólogo acredita que houve um processo de perda de contato com as instituições e os agentes públicos

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Por Paulo Beraldo
Atualização:

O antropólogo Roberto DaMatta acredita que parte dos brasileiros foi afastada da política pela falta de contato com o universo político e é justamente essa desconexão uma das causadoras da polarização vivida pelo País. Para DaMatta, os dois líderes nas pesquisas de intenção de voto nas eleições 2018, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT), não são os melhores candidatos para o momento atual. “É votar numa eleição para a frente com duas possibilidades de retorno ao passado”, disse. 

Para ele, o novo presidente vai precisar redefinir posições tradicionais, como a influência do Estado na vida do cidadão, e a relação do governo com o mercado. Autor de livros como O que faz o Brasil, Brasil e Carnaval, Malandros e Heróis, o antropólogo afirmou que uma nova Constituinte seria bem-vinda e a eleição não acaba após os brasileiros irem às urnas. “A responsabilidade é muito maior depois”. Ele acredita que o País passou a ser uma República sem dispensar os vícios da Monarquia. “Estamos acostumados sempre ter alguém para responsabilizar pelos nos erros”. Após as eleições, DaMatta espera uma pacificação nacional. 

Roberto DaMatta, antropólogo Foto: Fabio Motta/Estadão

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Como chegamos ao atual cenário político e social, com um País praticamente dividido?

Houve um processo de perda de contato com as instituições e os políticos. A classe média foi afastada da política. Não é questão de não querer, mas os políticos nos afastaram. Somos uma sociedade que transitou para uma República sem compreender o que é uma República. Reproduzimos na administração pública o sistema monárquico, mas a democracia é um regime que tem contabilidade e as pessoas são cobradas pelo que fazem. No Brasil, temos o lado pessoal que canibaliza o que deveria funcionar na base do mérito, sem raiva, favores e preconceitos. Não podemos deixar de ter numa sociedade moderna a regra da lei. E isso exige uma visão de mundo mais sofisticada do que a visão vigente por aqui. A sociedade não se emancipou de sua mentalidade escravocrata, de ter sempre alguém que faça algo por você, de responsabilizar alguém pelos erros que cometeu. Em todas as situações e setores da vida.

Como isso se reflete na política atual? 

A estrela do nosso cenário político é o Lula e ele está preso. A candidatura Haddad atrai porque é uma maneira de pessoas que são petistas ou simpáticas ao Lula usarem isso como uma espécie de revanche. Além disso, o Haddad introduz em um partido carismático elementos racionais e tecnológicos, um discurso tranquilo. Já o Bolsonaro representa um possível retorno ao regime militar. Ele não tem papas na língua, não tem muita sofisticação, e é justamente esse avesso que atrai, essa liberdade. É um candidato que diz hoje uma coisa e amanhã “desdiz” aquilo. Como, à essa altura do campeonato, um candidato a presidente faz isso? E tem ainda a facada, um tipo de atentado que nunca aconteceu antes no Brasil, agora em um momento com meios de difusão extraordinariamente poderosos. 

O que esses candidatos significam?

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No fundo, Fernando Haddad e Jair Bolsonaro são dois retornos. É votar numa eleição para a frente com duas possibilidades de retorno ao passado. Gostamos de celebridades, precisamos de heróis intocáveis, de pessoas que fazem sempre tudo dar certo. Mas só com boas intenções não se faz um governo. No Brasil, acho que temos uma certa alergia ao igualitarismo. Para perceber isso, basta ver como se reage em situações em que somos obrigados a sermos igualitários: “Você sabe com quem está falando?”, dizemos. Essa é a chave da campanha de Fernando Haddad: o Lula livre. É como se ele não pudesse ser preso, como o Getúlio Vargas, que também não podia. 

Como superar a polarização existente hoje no Brasil?

A história tem surpresas. Quem iria esperar que Lula iria preso? Que a Lava Jato fosse resultar nessa desmitificação de tantos políticos de centro, de direita e de esquerda? Quem entrar na Presidência, de um lado ou de outro, vai ter de reformular algumas posições tradicionais. Não vai poder governar contra o mercado ou totalmente a favor. Terá que redefinir discussões profundas do que a sociedade quer do Estado. Não dá para ter um Estado provedor de tudo. O cidadão tem que aprender a se defender com programas educacionais, com boas escolas e universidades. Para sobrar dinheiro de maneira efetiva. Temos de parar de pensar só em Brasília. Dar mais poder a outras cidades, aos Estados e cobrar esse poder dado.

Roberto DaMatta, antropólogo Foto: Fábio Motta/Estadão

Como vê a sociedade brasileira às vésperas da eleição? 

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A política, os partidos novos e os antigos têm muita importância, mas não se pode esquecer que estão dentro de um oceano de símbolos. A sociedade brasileira e seus costumes são os grandes protagonistas dessa eleição.

O que espera para o País a partir de 2019?

Espero que as pessoas entendam que a obrigação do cidadão é muito maior depois do voto. A eleição não acaba depois de ir para as urnas. É preciso que o cidadão seja um fiscal atento de quem elegeu, inverter as regras do jogo onde só o Estado fiscaliza o cidadão. A transparência da sociedade atual nos obrigou a olhar para onde não queríamos e ver o que não queríamos. É o que aconteceu com a Operação Lava Jato. Começou com procuradores e a Polícia Federal e o caldo foi engrossando até chegar aos grandes partidos. 

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Vivemos a era das fake news. Como o sr. enxerga a influência delas na sociedade brasileira e na disputa eleitoral?

A gente traduz fake como falso, mas não é falso. Fake significa postiço. É a informação com “jeitinho”. Ela atrapalha o debate, desestrutura o jogo político e transforma o mundo num lugar impossível de ser vivido. A razão pela qual as fake news espantam é que os fatos surgem a todo minuto diante dos olhos e da mente. E interpretamos os fatos a partir dos instrumentos que temos em mãos. Se são distorcidos, a interpretação é prejudicada. 

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A Constituição de 1988 está em xeque? Durante a campanha, muitos candidatos falam em uma nova Constituinte. O que deveríamos entender deste momento em que se completam três décadas da Carta?

Acho que temos de fazer uma revisão das regras do jogo. O Fundo Partidário, por exemplo, é um absurdo. Como vou pagar uma campanha política? Eu voto, mas eles que paguem suas campanhas. Além disso, os partidos que estão no poder têm mais força. Precisamos de uma Constituição menor, mais clara. Ela deve falar de deveres e colocar limites para o próprio Estado. Temos um sistema com muitos impostos, encargos, uma massa de recursos que faz apêndices. Acho também que o antagonismo nos juízes do Supremo Tribunal Federal é demasiado. Mas essa é uma limitação que não pode ser imposta de fora para dentro, porque é censura. Deveria ser uma discussão de dentro para fora, o que a gente chama de ética.